Quanto mais quente melhor: humor, astúcia e sensualidade





Sexta passada fui assistir ao filme “Quanto mais quente melhor” (Billy Wilder, 1959), que deu continuidade a sessão de arte do cinema São Luiz. É interessante notar que os dois primeiros filmes dessa retomada da sessão de arte (vide postagens anteriores) sejam comedias (a estreia se deu com “Meu Tio” de Jacques Tati). Isto me levou a pensar que o título mais apropriado seria sessão de clássicos e não de arte (concebo filmes de arte que sejam comedias, mas certamente “Quanto mais quente melhor” não pode ser taxado de artístico, pelo menos assim penso eu; além disso, na programação inicialmente anunciada há filmes das décadas de 1950 a 1970, não contemplando, portanto, filmes de arte recentes). Para mim se tratam de filmes consagrados, mas não é objetivo deste texto tratar disso, mas do filme em questão.
Pode parecer estranho, mas ainda que tenha achado “Meu Tio” mais engraçado, considero “Quanto mais quente melhor” mais bem feito (roteiro me parece mais bem amarrado, fazendo o filme fluir melhor, as atuações são superiores); o enredo trata de uma dupla de músicos que presencia um crime e é obrigada a fugir da máfia (disfarçando-se de mulheres acabam embarcando num trem e ingressando numa banda só de garotas); o interesse de um impagável (e um tanto repugnante) velho milionário por “Daphne” (nome adotado pelo personagem Jerry, interpretado por Jack Lemmon) rende momentos engraçados (destaque para a cena em que “Daphne” chacoalha maracás no quarto do hotel, comemorando seu noivado com o velho milionário, bem como a clássica cena final na qual, tentando livrar-se do velho, “Daphne” afirma: “não sou loira natural”, “eu fumo”, “não posso ter filhos” e, por fim, percebendo que seus argumentos não dissuadiam o interesse do milionário, após retirar a peruca: “eu sou homem”, ao que o idoso replica na mais pura tranqüilidade: “ninguém é perfeito”).
O personagem Joe (interpretado por Tony Curtis e que adota o codinome “Josephine”) protagoniza uma das cenas mais impagáveis do filme; ao saber que Sugar (Marilyn Monroe, carnuda e apetitosa!) está a procura de um milionário e que ela tem uma queda por homens de óculos (que lhe parecem mais sensíveis), ele se traveste e incorpora um milionário sensível e mal sucedido com as mulheres; o primeiro encontro deles se dá na praia e a maneira absolutamente cínica como ele se faz notar por ela e vai esnobando-a em seguida – ela diz que toca numa banda de jazz, ao que ele replica algo do tipo: “ah, aquela música rápida. Prefiro música clássica” – é deveras cômica. O mesmo se dá na cena em que ambos estão no iate (conseguido na mais pura malandragem), e ele afirma que após a morte de sua amada, nunca mais sentiu nada por outra mulher; vemos então o personagem de Marilyn dando-lhe sucessivos beijos (almejados por todos os homens do planeta, ou quase) e ele desdenhando (por puro fingimento), gerando uma situação na qual é a beldade feminina quem se joga aos pés de um homem que não era particularmente bonito ou culto, sendo rico apenas na aparência, mas muito inteligente (no sentido de astuto).
Vendo-se obrigados a fugir (pois por uma trágica coincidência os mafiosos foram parar no mesmo hotel e acabaram descobrindo o disfarce de “Josephine” e “Daphne”), Joe telefona para Sugar dizendo que precisou viajar e não mais irá voltar. Ao falar com ela, já como “Josephine” (obviamente ela não sabia desta dupla identidade), ele(a) diz a Sugar que ela irá esquecer o milionário por quem se apaixonara, mas ela retruca: como, se a em toda esquina há um posto Shell (ele dissera ser dono de tal empresa).
Em suma, um filme leve, divertido, bem feito, contando com boas atuações e com uma Marilyn Monroe hipnótica. Passa longe de arte, mas merece sem dúvida a alcunha de clássico.
Alberto Bezerra de Abreu, 11/06/2010
Festival Varilux de Cinema Francês 2010 (Recife)




O filme "Oceanos" (Jacques Cluzaud, Jacques Perrin, 2009) faz (segundo relatos, inclusive de um amigo meu) com que nos sintamos habitantes da imensidão marinha. Já "O Pofeta" (Jacques Audiard, 2008), vencedor de diversos prêmios e recentemente resenhado (e elogiado!) na revista Veja conta a história de um jovem que só encontra "prosperidade" ao ser preso e paulatinamente ganhar a confiança do chefe da facção dos córsicos.
Outros filmes, como "O dia da saia" (Jean-Paul Lilienfeld, 2008), o qual mostra uma exausta professora que faz seus alunos de reféns, "Coco Chanel & Igor Stravinsky" (Jan Kounen, 2009), pela simples menção ao fantástico compositor russo (Stravinsky, que parece ser personagem secundário) e "O pequeno Nicolau" (Laurent Tirard, 2008), aparentemente um poético e divertido relato da infância, parecem-me ótimas pedidas.
O festival irá até o dia 10 (quinta-feira), sempre no Cinema da Fundação.
Confiram a programação completa (Recife) em:
http://www.festivalcinefrances.com/programacao.php?id=8
Alberto Bezerra de Abreu, 05/06/2010
Meu Tio: sátira a obsessão tecnológica




(http://miradourocinematografico.blogspot.com/2010_05_16_archive.html), a retomada da sessão de arte do cinema São Luiz, após sua reabertura foi iniciada com o filme “Meu Tio” (Jacques Tati, 1958); trata-se duma sátira a obsessão pela tecnologia. O enredo é bastante simples: família abastarda (os Arpet) vivem numa casa cheia de apetrechos tecnológicos. A esposa persuade o marido a arrumar um emprego em sua fábrica para o Sr. Hulot (o tio do título, que é irmão da mulher citada). No entanto, este personagem excêntrico (que já aparecera em outros filmes do diretor, como “As férias do Sr. Hulot” de 1953) põe tudo a perder com seu jeito desastrado (a cena em que ele supostamente sobe na mesa para espiar a mulher no banheiro é cômica é foi já a primeira que me arrancou gargalhadas).
O filme começa e termina de maneira singela: mostra um grupo de cachorros perambulando pelas ruas dum bairro pobre (apesar de ser um filme franco-italiano, tanto o estilo como os cenários me remetem à Itália, mas segundo a resenha do livro “1001 filmes para ver antes de morrer”, a história se passa na França); entre outras cenas, vemos um grupo de crianças fazendo peraltices, como sacolejar carros para fazerem o motorista pensar que o carro de trás bateu em sua traseira e assoviar para fazer com que transeuntes olhem para trás e dêem com a cara num poste (travessuras deliciosas de infância que parecem não mais existir hoje em dia). As trapalhadas do Sr. Hulot na fábrica de seu cunhado, bem como a cômica cena dele subindo para seu quarto, no último andar duma pensão bastante modesta são bem divertidas, mas o foco é mesmo a casa dos Arpet. Definitivamente o Sr. Hulot não se dá bem com os aparelhos tecnológicos sofisticados da casa de seus parentes, cometendo sucessivos desastres. Mas o aspecto cômico do filme vai além disso: no jardim da residência há uma fonte com um peixe que cospe água; geralmente esta fonte fica desligada mas quando chega alguma visita, antes de acionar eletronicamente a abertura do portão a dona da casa liga a fonte; por vezes trata-se de alguém que não convém impressionar (o Sr. Hulot ou um entregador) e lá se põe ela a desligar o apetrecho. Parece-me que além de uma crítica a obsessão pela tecnologia, o diretor crítica também a futilidade da família burguesa excessivamente preocupada com aparências, bons modos, com o que é chique, etc. O contraste entre o bairro pobre e a casa sofisticada parece apontar para uma crítica social, mas esta não é aprofundada.
Confesso que meu interesse por este filme foi muito pequeno perto de outros anunciados para a tal sessão de arte (Bergman, Fellini e Truffaut, por exemplo), mas valeu muito a pena vê-lo, por três motivos: trata-se de um clássico (estando entre os “1001 filmes para assistir antes de morrer”, os quais tentarei resenhar aqui); é divertidíssimo (gargalhei de forma escandalosa no cinema a ponto se ser repreendido pela pessoa que me fazia companhia rs, mas em pouco tempo outras pessoas faziam o mesmo – acho que fui o primeiro) e por fim, contribui para a prosperidade do evento (infelizmente, ao término do filme foi possível perceber que a quantidade de pessoas fora bastante reduzida, o que pode comprometer a continuidade da exibição de clássicos de sétima arte a um preço bastante em conta – 4$ a inteira, 2$ a meia entrada).
Por fim, cabe expressar uma impressão: acredito que este filme (e possivelmente outros do diretor) tenha constituído grande influência para Roberto Benigni (“O monstro”, “A vida é bela”).
Alberto Bezerra de Abre, 04/06/2010
A perfeita fruição do tempo em Polícia, Adjetivo




*Pedro Sobral
O que é, por conseguinte, o tempo?
Se ninguém me perguntar eu o sei;
se eu quiser explicá-lo a quem me fizer essa
pergunta, já não saberei dizê-lo. (Santo Agostinho)
Porumboiu, que já havia filmado À Leste de Bucareste (2006), mostra uma Romênia por um lado sequiosa de adentrar nas práticas da Europa contemporânea, por outro, ainda presa ao ranço de mais de duas décadas do regime comunista (sinônimo de atraso) personificado na figura do ditador Nicolae Ceausescu.
Para o jovem policial, o fato de um garoto fumar haxixe de quando em vez é considerado um delito de menor – talvez, minúsculo – potencial ofensivo. Intui, de forma humanista e depois de ter viajado na lua-de-mel à Itália, que as leis romenas mudarão em relação ao consumo de entorpecentes e se tornarão mais brandas – uma forma do país oriental ser identificado junto aos outros europeus. Como trabalhador livre, mas recém-egresso de uma tradição totalitária que perpassava conditio sine quae non todos os governos da Europa do Leste, o policial se submete a escrever relatórios pormenorizados acerca da rotina do garoto fumante. Sua investigação vai ao ponto de cronometrar os minutos gastos pelo adolescente em suas baforadas. Tudo isso, claro, é posto nos relatórios, servindo-se de uma linguagem pretensamente técnica, que soa, ao menos para um brasileiro, mais como literatura fantástica, devido ao nonsense da situação.
Polícia, Adjetivo é um filme de grandes qualidades: mostra-nos um retrato da vida diária de um país fora dos noticiários internacionais, por seu papel reduzido na cultura e comércio mundial, e talvez também por ter sido integrante da “Cortina de Ferro”; há a atuação segura de Dragos Bucur e o desfecho – sem concessões – da obra, no momento em que o delegado ao qual o jovem policial é subordinado se serve de um dicionário (valendo-se de sua autoridade em grande medida) para enterrar as pretensões do agente da lei de deixar o jovem drogado persistir, incólume, na sua vida de fumante e proto-traficante. O transcorrer lento do tempo, as demoradas tomadas em que se focaliza o protagonista por minutos a fio são, entretanto, os aspectos mais intrigantes do filme.
Depois de um dia de trabalho o policial volta para casa, cumprimenta a esposa e segue para a cozinha: esquenta a sopa, põe o caldo no prato, corta em pedaços o pão com as mãos, joga-os tal qual iscas na sopa quente e começa a comer. Na sala do modesto apartamento, a esposa vê um vídeo na internet – provavelmente no You Tube – de uma cantora local. O vídeo termina (na primeira exibição vinham legendas em português, era uma música romântica), a esposa vê uma vez mais. Termina a segunda exibição, ela põe novamente. Enquanto isso, na copa, a câmera estática filma o perfil do policial que segue sorvendo o caldo quente, fazendo o ruído característico de quem ou não recebeu a educação adequada para se portar à mesa, ou simplesmente está demais à vontade – e daí afrouxa as regras (nessa cena fiquei imaginando o quê viria a seguir: ele enfiará o dedo mínimo no ouvido para tirar cera?); a esposa continua ouvindo a mesma canção no computador. O policial, depois de terminar a sopa, pega outro prato. Come lentamente. Há, ademais, os takes em que o policial espia o adolescente se drogando por minutos. Ou quando escreve seu relatório burocrático, repleto de minúcias sobre o nada que observou.
A idéia do físico Einstein acerca da quadrimensionalidade do universo – as três mais óbvias acrescidas à do tempo, nunca fez tanto sentido quanto no filme Polícia, Adjetivo. A possibilidade de espiar os momentos romanescos das pessoas comuns foram registrados de modo hiper-realista na película de Porumboiu. Um deleite para os adeptos do voyeurismo e fãs de Big Brother em geral.
*Pedro Sobral é licenciado em história pela Universidade Católica de Pernambuco, bacharelando em ciências sociais pela UFPE, professor da rede pública e particular e cinéfilo nas horas vagas.
Retorno das sessões de arte no cinema São Luiz (Recife)

Seguindo meu costume de folhear despretensiosamente a página de cultura dos jornais no fim de semana, me deparei com uma ótima notícia: o cinema São Luiz (Recife), recentemente reaberto, voltará a exibir sessões de arte; nas sextas-feiras às 20h e aos sábados às 10h (o horário do sábado é ingrato, sobretudo para os boêmios, mas o horário de sexta casa bem cinema – cerveja =)
O primeiro filme desta retomada será exibido excepcionalmente neste domingo; trata-se da comédia “Meu Tio” (França, 1958), de Jacque Tati. Na pauta para os próximos fins de semana estão “Os incompreendidos” (França, 1959), de François Truffaut (imperdível), “Quanto mais quente melhor” (EUA, 1959), de Bily Wilder, “Morte em Veneza” (Itália, 1971), de Luchino Visconti, “A doce vida” (Itália, 1960), de Federico Fellini (também imperdível), obras (não especificadas) de Ingmar Bergman (podê-las ver no cinema será um êxtase!) e clássicos do cinema nacional, como “O homem do Sputnik” (Brasil, 1959), de Carlos Manga.
Abaixo segue o link da notícia completa:
www.diariodepernambuco.com.br/2010/05/16/viver4_0.asp
Alberto Bezerra de Abreu
Cine PE 2010 sábado: noite de Tony Ramos, Paulo José e Jorge Amado




A última noite da mostra competitiva do Cine Pe propiciou fortes emoções mesmo quando filmes não estavam sendo exibidos; trata-se da homenagem prestada ao ator Tony Ramos (aplaudido de pé), o qual se estendeu em seu discurso, mas com um carisma tal que não gerou incômodo. Durante a apresentação do longa “Quincas Berro d’Água”, Paulo José (seu ator principal, recentemente operado para amenizar os sintomas do mal de Parkinson) discursou brevemente e foi também aplaudido de pé. Dois momentos emocionantes, até porque o aplauso de pé é para poucos e em ambos os casos foi deveras merecido.
A exibição foi iniciada com “Áurea” (Zeca Ferreira, RJ), história de uma cantora da noite carioca que, mesmo com muitos anos de “estrada”, continua voltando para casa de kombi (apesar do grande talento, canta sempre para público reduzido e vive modestamente). Filme interessante, sobretudo quando mostra a cantora em ação ou ouvindo música em seu modesto apartamento, mas que, em minha opinião, não merecia o prêmio de melhor curta digital.
O curta seguinte foi “Família Vidal” (Diego Benevides, PB), que mostra o cotidiano de uma família circense residente no interior da Paraíba. As condições modestas do circo me chamaram muito atenção, bem como os depoimentos de uma de suas integrantes, sobre as reclamações do público (que se queixa do valor de 1$ cobrado – este sendo diminuído para 50 centavos em alguns lugares!) e a vantagem dum circo pequeno em relação a um grande: o clima intimista, que permite ao público, por exemplo, ouvir a piada do palhaço, o que não aconteceria num circo maior, ao menos para os que sentam ao fundo (lembrei-me do show do Iron Maiden em Recife ano passado onde aqueles que, como eu, não foram para área vip, tiveram de assistir ao show pelo telão, um ótimo exemplo de que coisas demasiado grandiosas acabam perdendo a magia). Heresias a parte, gostei mais deste curta que do famoso documentário “Os palhaços” (Fellini”); para mim, o mestre italiano acabou se perdendo nessa obra; a simplicidade do curta paraibano, por sua vez, me cativou levemente; a pretensão de sofisticação do longa de Fellini me cansou; só critico no curta a ausência de cenas dos artistas em ação (mas talvez isso tenha sido melhor...)
O terceiro curta foi “Geral” (Anna Azevedo, RJ), que mostra o comportamento de torcedores na extinta geral do Maracanã (as filmagens foram realizadas em 2005, quando tal espaço ainda existia); curiosamente, o que chamam de geral no estádio carioca é a parte de baixo da arquibancada, próxima do fosso, que dá ao torcedor uma visão no mesmo nível do campo (uma visão ruim, já que a visão melhor é a panorâmica, distante a acima do nível do campo), enquanto aqui Recife a geral é o chamado anel superior, no qual torcedores ficam expostos a sol e chuva. Realizado durante jogos do Flamengo e do Fluminense, o documentário mostra o fanatismo do torcedores, retratando alguns mais extravagantes, como um com máscara do pânico, outro vestido de padre, bem como aqueles mais exaltados. Intercalava tais momentos com cenas do estádio vazio e “causos” contados por alguns torcedores; filme interessante, contagiante, foi ovacionado pelo público mas, em que pese minha paixão pelo futebol, não ficou entre meus favoritos. Achei-o descritivo demais e gostaria de ver mais cenas do jogos, afinal fica um tanto sem sentido mostrar reações do público sem mostrar o que eles assistem.
A exibição de curtas prosseguiu com o estranho “Nego fugido” (Cláudio Marques; Marília Hughes Guerreiro, BA); mostrando a realização de uma rústica festa popular por parte de afro-descendentes e o estranhamento que ela causou em dois forasteiros que a foram observar como um laboratório para teatro, o filme cresce a partir do momento em que o rapaz se integra a festa, pintando seu rosto de preto (ele era branco) e sendo humilhado (tudo encenação, mas que assustou a garota que o acompanhava); a violência (verbal apenas) da interpretação do jagunço, bem como a troca de papéis (o negro como algoz, o branco como vítima) me soaram interessantes, mas o filme não deixa de causar certo estranhamento (mais pela forma do que por esta inversão de papéis), ou seja, mais um estranhamento estético do que social (e acredito não ter sido este o objetivo). Mas talvez eu o tenha interpretado de forma totalmente equivocada...
O curta seguinte foi “Um médico rural” (Cláudio G. Fernandes, PE); inspirado num conto de Kafka, o filme mostra um médico indo atender um paciente em local distante e simultaneamente, sua criada ser atacada por um homem; com pitadas de suspense, bela fotografia e trilha sonora envolvente, o filme deixa uma desagradável sensação de estar faltando algo. Acredito ser mais uma característica presente originalmente no conto (não sei o título mas sei que não li, pois não conheço contos do autor mas somente suas obras mais populares), e menos uma opção estilística do diretor. Em termos estéticos o filme é ótimo, mas em termos de enredo não agradou (inclusive a mim). Adaptar Kafka é um desafio e tanto, como provou a versão de “O processo” (1993, de David Jones); seu filme, apesar de muito fiel à obra homônima do escritor checo em que foi inspirada, passa a sensação de faltar algo, (como quando um músico executa perfeitamente uma música, mas sem alma). A célebre versão de Orson Welles para tal obra eu não assisti AINDA.
O último curta da XIV edição do Cine PE foi “Homem-bomba” (Tarcísio Lara Puiati, RJ), que mostra dois jovens garotos ajudantes do tráfico de drogas num morro carioca. Os diálogos entre eles são muito bem construídos, possuindo humor e profundidade simultaneamente, sem soar forçado (mostrar crianças numa quase divagação poderia ser arriscado em termos de verossimilhança), pois os garotos atuam com uma naturalidade notável. A cena de despedida é tocante e encerra a obra de maneira bastante apropriada. Os aplausos foram enfáticos.
O único longa da noite não participava da mostra competitiva: “Quincas Berro d’Água” (Sérgio Machado, RJ) é baseado na obra quase homônima (“A morte de Quincas Berro d’água”) de Jorge Amado. Conta a história do recentemente falecido Quincas que é levado por seus companheiros de farra para a derradeira comemoração (justamente no dia do seu aniversário!). Numa das célebres frases do longa, o defunto diz (sim, ele fala com espectador, mediante pensamento): “minha noite de defunto é mais animada que a de muito vivo”. Outra frase célebre é proferida por um de seus “comparsas” durante seu velório, para justificar a recitação duma poesia de qualidade duvidosa: “poesia ruim é melhor que bosta nenhuma”. Bastante divertido, o filme surpreendeu-me principalmente em sua seqüência inicial (que é também a final), a qual mostra o corpo de Quincas no mar, durante a noite, numa cena esteticamente belíssima que remete antes a um filme artístico do que a um filme mais acessível. As atuações são bastante convincentes e foi com grande satisfação que contemplei O desempenho de Paulo José (Quincas), o qual, apesar da doença, saiu-se muito bem em seu papel (convém salientar que ele já interpretara o personagem principal da obra “O triste fim de Policarpo Quaresma” do escritor Lima Barreto). “Quincas Berro d’água” me remeteu a três coisas: ao livro “Memórias póstumas da Brás Cubas” (Machado de Assis), pela narrativa de um defunto; ao filme “Um morto muito louco” e a um episódio do Chapolin Colorado (!) em que defuntos eram transportados de maneira a parecerem vivos.
Acredito que apesar da qualidade de alguns curtas como “Homem-bomba”, o grande destaque da noite foi o divertidíssimo longa “Quincas Berro d’água”, fechando com chave de ouro a última noite do Cine PE no Teatro Guararapes (no domingo se seu a premiação no Cinema São Luiz, com direito a exibição – fora de competição – do documentário “Continuação” de Rodrigo Pinto, sobre o músico pernambucano Lenine).
Alberto Bezerra de Abreu, maio 2010
Cine PE 2010sexta-feira: criatividade, humor e filmes intrigantes

Antes do início da mostra competitiva, tivemos a exibição do vencedor do concurso Celucine (filmes de até 3 minutos realizados em celular!) do ano passado. Eu tivera a oportunidade de assistir os finalistas justamente na única noite do Cine PE na qual compareci em 2009 e meu favorito foi o vencedor. Trata-se de do filme: “A palavra mais difícil” de Bruna Baitelli; a temática do concurso era “de cabeça para baixo” e o filme mostrava um casal, estando a mulher de pé no mesmo ângulo que nós, enquanto o homem estava em pé num ângulo que ficava de cabeça para baixo em relação ao público; curiosamente, o lugar sobre o qual ele pisava não se assemelhava minimamente a um teto, mas era idêntico ao cenário sobre o qual a mulher estava de pé (indicando certamente uma metáfora); ambos realizavam atividades cotidianas, até que ele escrevia a palavra “desculpa” num grande papel e mostrava para ela; na cena seguinte via-mos ambos deitados, agora num mesmo plano, sem estarem um de cabeça para baixo em relação ao outro. Achei-o belíssimo, de uma criatividade e de uma sensibilidade surpreendentes e encantadores (a parte técnica, claro, era simples).
Iniciando a mostra de curta em competição tivemos “Se meu pai fosse de pedra” (Maria Camargo, RJ); filha homenageia pai (artista plástico), autor de esculturas (abstratas) em mármore. O filme, apesar de interessante e bem feito, me pareceu demasiado pessoal (a animação “Eu queria ser um monstro”, exibida terça-feira também fora uma homenagem do realizador a seu pai, mas isso só ficava claro no final da obra, ao passo que, em minha opinião, o curta de Maria Camargo não é tanto a história de um artista que falecera, mas antes da filha deste – a própria – e seu respeito a admiração pelo artista/ pai). De modo que, apesar de o artista aparecer mais que ela (há diversas cenas com depoimentos dele), é sua filha o personagem principal do filme, ao menos foi essa minha impressão. O que achei de mais interessante foi quando a filha mencionou uma frase do pai: “se eu morrer minha obra permanecerá” (ou algo do tipo), ao que ela replicou que antes de artista ele era um homem. Após sua morte, ela afirma que ambos estavam certos. De fato, são perspectivas diferentes, ambas válidas. Só este questionamento já vale o filme, que foi mais aplaudido do que eu esperava.
O curta seguinte foi o intrigante “O plano do cachorro” (Arthur Lins; Ely Marques, PB); na madrugada (de João Pessoa, creio), vemos um corpo humano estendido no meio da rua, ocupando uma das faixas; outro homem arrasta o corpo para que este fique exatamente no meio da rua, entre as duas faixas; após isso, um carro passa ao lado dele, sem tomar conhecimento da situação; depois passa um ônibus (e a câmera passa a focalizar o interior do veiculo que é parado pelo motorista, que desce – para analisar o suporto cadáver, inferimos – e sobe, prosseguindo a viagem). Após tudo isso, o homem vivo urina em cima daquele que supostamente está morto; passa mais um carro sem parar ou sequer diminuir a velocidade e logo depois o homem deitado (que além de imóvel, estava com sangue na cabeça), se levanta e caminha ameaçadoramente em direção ao outro que se põe a correr. A partir daí o filme se torna ainda mais curioso: a perseguição prossegue até o amanhecer, até que ambos chegam a um terreno desabitado e põem-se a brigar (nada de socos ou chutes, apenas os dois rolando no chão, um tentando dominar o outro, num embate deprimente que não dá em nada); a isso tudo assiste um cão o qual, após algum tempo, vai embora. Entenderam a menção ao cachorro do título? Soou-me como uma grande gozação. Gostei, pois me deixou intrigado, mas o público aplaudiu moderadamente.
O próximo curta foi “Zé(s)” (Piu Gomes, RJ), filme que narra o encontro do célebre diretor de teatro Zé Celso e do mecânico Zé Perdiz; na oficina deste (há décadas) se realizavam peças de teatro. Mostram-se falas de ambos, a forma que encontraram de se opor à ditadura através do teatro (o primeiro produzindo, o segundo cedendo o local); é deveras interessante a analogia de Zé Celso entre teatro e oficina mecânica, o corpo do ator sendo moldado duramente, como uma bigorna; não menos interessante é a fala de Zé Perdiz, o qual, perguntado se o local do qual era dono seria uma oficina ou um teatro, respondera: de dia é uma oficina mecânica, a noite, um teatro. Me remeteu diretamente ao saudoso “Garagem” (Recife, próximo ao Circo Maluco Beleza, berço do festival Abril pro Rock), que de dia era uma borracharia e a noite, um bar (o qual foi demolido ano passado, sem que este que vos escreve tenha tido a oportunidade de lá comparecer uma vez sequer). Como a realidade tende a ser dura, a oficina de Zé Perdiz (em Brasília) também foi demolida, para construção de grandes prédios. A ganância parece vencer a poesia, mas a denúncia via curta alimenta alguma esperança.
Em seguida tivemos “Amigos bizarros do Ricardinho” (Augusto Canani, RS), um curta de humor que apesar de engraçado, não conseguiu me arrancar nenhuma gargalhada. Mas não posso negar ser ele muito legal (e de fato foi sem dúvida o mais aplaudido entre os curtas na noite de sexta). É impossível deixar de mencionar alguns dos casos bizarros citados na obra, como a tia que em cinco partos teve cinco vezes objetos cirúrgicos (até mesmo uma luva!) esquecidos dentro de seu corpo; a prima que viu o namorado morrer em seus braços durante uma dança e (meu “causo” favorito): a tartaruga que fugiu de casa e voltou um ano (!) depois. Quando o personagem principal contava tais histórias sempre alguém dizia “que piada sem graça” e ele replicava dizendo ser verdade. Na fala do responsável pelo filme (não era o diretor – que é também o ator principal, o “Ricardinho” do título), afirmou-se que de fato a histórias eram verdadeiras (será possível?).
Para encerrar os curtas da noite, tivemos o peculiar “Quando a chuva chegar” (Jorane de Castro, PA); em linhas gerais, narra a história dum apartamento que desperta nas pessoas um intenso desejo sexual por quem estiver por perto; isso parece ser sabido inclusive por pelos demais residentes do prédio e por quem sequer mora nele. A cena de sexo entre o casal que reside no apartamento “mágico” (abençoado? amaldiçoado?), apesar de nada ter de explícito é muito bonita, sem perder em intensidade (não é demasiado romantizada, expressa tesão, não amor). A peculiaridade da residência me remeteu de imediato a “O anjo Exterminador” de Bunuel (uma ótima referência, diga-se de passagem), de modo a ser este mais um curta realmente interessante.
O único longa da noite foi o surpreendente e intrigante “Não se pode viver sem amor” (Jorge Duran, RJ); o filme até próximo de seu final aparenta ser uma obra convencional (exceto por algumas cenas com o garoto: já no início, ele repete obsessivamente palavras que ocasionam uma violenta ventania; noutro momento, ele chama insistentemente por chuva, e esta de fato vem; antes disso, quando sua mãe estava em perigo, um mendigo pega fogo do nada, supostamente por causa do menino; por fim...). Mas próximo do final as coisas “desandam” (ou melhoram, dependendo da perspectiva) de vez: descobre-se que aquele que imaginávamos ser o pai do garoto na verdade não o é; chega-se a situação surreal de um personagem (Ângelo Antônio) estar em sua casa, com o cadáver de seu pai recentemente falecido (infarto); um assaltante (Cauã Reymond) que já roubara seu dinheiro no táxi que aquele dirigia; mãe e filho pequeno que haviam sidos seus passageiros e foram a sua casa devolver sua carteira, que ficara com o garoto e por fim, a namorada do assaltante, que fora chamada à residência por este; o assaltante apresenta sua vítima como alguém que lhe contratara para fazer um inventário (!); finalizando a absurda situação, o garoto começa a clamar para que o cadáver do idoso acorde e isso nos leva a cena final na qual alguns personagens (até onde entendi) trocam de identidade. No decorrer do filme aparecem algumas cenas de flash-back que dão indícios importantes de como montar o quebra cabeça deste enredo nada convencional. O filme acaba, portanto, sendo um tanto difícil para nós, demasiado acostumados com as facilidades de narrativas lineares, desprovidas de ambigüidades e desafios a inteligência e a sensibilidade do espectador. A obra me surpreendeu e me agradou deveras. E acima de tudo, me deixou intrigado.
Noite de poesia (“A palavra mais difícil”), crítica social (“Zé(s)”), humor (“Amigos bizarros do Ricardinho”) e filmes intrigantes (“O plano do cachorro”, “Não se pode viver sem amor”) a sexta-feira do Cine PE surpreendeu positivamente.
Alberto Bezerra de Abreu, maio 2010
About Me

- Miradouro Cinematográfico
- Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)