A revolução não será televisionada ou quando o esquerdismo bocó fura os olhos e tritura os cérebros dos naïves
*Pedro Sobral
No ano de 2001, os cineastas irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain viajaram à Venezuela para fazer turismo político e realizar um documentário sobre o já então controverso presidente Hugo Chávez, empossado dois anos antes.
Ao longo das filmagens, a dupla irlandesa se dá conta de que está em marcha um agudo processo para depor o presidente eleito pelas urnas e, sensatamente, muda o foco do documentário da figura burlesca de Hugo Chávez para a ruidosa oposição política e midiática no país caribenho. E voilà: nasce o ornitorrinco – animal estranho, monstrengo à Frankenstein – A revolução não será televisionada (The revolution will not be televised – Irlanda, 2003, 74 minutos).
Os mais incautos dirão que A revolução não será televisionada comprova a existência de uma burguesia local malvada, alinhada ao imperialismo norte-americano, preocupada com seus próprios interesses imediatos. Mas o ambiente político da Venezuela de antes e depois das filmagens é muito mais complexo do que o vulgar maniqueísmo e não comporta enquadramentos desse modelo. Para se ter uma idéia do desgaste do sistema de representação venezuelano em 1998, basta dizer que a principal adversária de Hugo Chávez na disputa majoritária daquele ano era Irene Sáez, ex-Miss Universo, que concorreu com o arfante apoio político da Acción Democrática – agremiação que se revezava no poder com seu congênere Copei (partido democrata-cristão) havia exatamente quarenta anos.
Imediatamente após a posse, em 1999, Chávez convoca uma assembléia constituinte que dissolve a Câmara Alta do país (e sem senadores fica mais fácil governar com parca oposição tendo em vista que a Câmara Alta não é – necessariamente – governista como sói ser a Câmara Baixa), muda o nome da nação de República Federativa da Venezuela para República Bolivariana da Venezuela e revoga alguns dispositivos constitucionais acerca da extração de petróleo pela estatal Pdvsa, grande fomentador de divisas para os venezuelanos, além da lei de posse de terras.
No que toca ao adjetivo bolivariano, devo abrir um parêntese: estive na Venezuela em 2007 e me impressionou como tudo no país recebe – agora com Chávez – o epíteto bolivariano: rua bolivariana, avenida bolivariana, universidade bolivariana, político bolivariano e assim sucessivamente ad nauseam, ad aeternum e ad infernum. Seria o pesadelo extremo daquela personagem do desenho animado Pernalonga (um baixinho, com longos bigodes cujo nome se esvaiu de minha memória). Em um episódio, o coelho Pernalonga deixa essa personagem de baixa estatura enlouquecida e paranóica. E, na sua mente enferma, todas as pessoas que vê na rua – policiais, mulheres, bebês... – são coelhos e sempre lhe contestam com a indefectível pergunta: “O quê é que há, chefe?” Foi mais ou menos isso que senti na República Bolivariana: “O quê é que há, bolivariano?” Demente.
Na panfletária película, os oposicionistas venezuelanos são pegos em seus piores momentos: numa associação patronal de bairro, um dos oradores pede que seus colegas vigiem suas empregadas domésticas, pois elas podem levar explosivos para detonar as casas burguesas; em outra cena, vemos imagens de algum canal privado do país e num desses programas matutinos de futilidades, quero dizer, variedades, a apresentadora se despede dizendo “Até quinta, de preferência sem Chávez!”; em um noticiário televisivo, em que o âncora anuncia que líderes da Acción Democrática solicitaram um exame de sanidade mental do presidente. Por outro lado, dos chavistas só são apresentados os momentos de música e poesia, e não se fotografa a realidade dos militantes rojos, rojitos1 (assim os chama Chávez): desocupados, violentos, cegos ao personalismo do caudilho etc.
Em fevereiro de 2002, o presidente do país resolve acomodar sua “cumpanheirada” na cobiçada estatal Pdvsa, em detrimento aos quadros técnicos que geriam a empresa até então. Foi a senha para a oposição convocar uma marcha em direção à sede da petrolífera. Neste ponto, A revolução não será televisionada assume o papel de imprensa chavista e manipula/distorce as informações a gosto. Os oposicionistas liderados pelo presidente da federação de comércio local (um equivalente seria a Fiesp no Brasil), Pedro Carmona, e o líder da principal central sindical do país, Carlos Ortega, decidem entre si desviar a passeata da sede da Pdvsa até o Palácio de Miraflores (palácio do governo) onde chavistas já estavam acomodados. Só poderia dar em morte – e deu. Ambos, situação e oposição, se acusam pelo assassinato de pelo menos 19 pessoas no dia 11 de abril de 2002. Para Bartley e O’ Briain, por supuesto, as mortes foram causadas pelos militantes oposicionistas. Os irlandeses conseguiram filmar dentro de Miraflores os bastidores do golpe, a prisão de Chávez, a assunção de Pedro Carmona como presidente venezuelano e o contragolpe a partir de membros da guarda leal ao recém-deposto presidente.
A revolução não será televisionada termina com Hugo Chávez reassumindo o posto de mandatário máximo do país caribenho. Nos anos que se seguiram ao golpe perpetrado pela dupla Carmona/Ortega, o governo Chávez transitou de uma semi-democracia pautada no mais castiço populismo latino-americano para um regime totalitário e ditatorial, pura e simplesmente.
O golpe de 02 é sempre utilizado pelo caudilho para justificar qualquer ação institucional de seu governo no âmbito de cercear a liberdade de imprensa – daí o fechamento da mais famosa rede de televisão local, a RCTV, em 2007, de 250 rádios com programação ligada aos poucos – e bravos – oposicionistas, em 2009, ademais das ameaças constantes ao canal Globovisión. Tal qual Il duce, o ditador italiano Benito Mussolini, Chávez fomentou grupos para-militares que devem obediência apenas ao ditador venezuelano (La Piedrita e Los Tupamaros – nome que imita o dos guerrilheiros/terroristas uruguaios dos anos 70, são exemplos), além das constantes agressões às instituições universitárias – as não-bolivarianas, que fique claro. Mas o mais aterrador é, sem dúvida, a Lista Tascón, de 2004. A dita lista enumera as pessoas que votaram a favor de um referendum revocatório do governo Chávez naquele ano. Aos desavisados que tiveram sua firma na lista, restou prosseguir a vida sem contar com a proteção e qualquer benefício do Estado: não podem mais tirar passaportes, os que eram funcionários públicos – de qualquer nível – foram exonerados, é negado crédito oficial aos empreendedores da Lista Tascón, entre outras arbitrariedades que tais.
A Venezuela caminha a passos céleres para uma guerra civil. As fraturas da sociedade local não estão mais calcadas nas diferenças entre pobres x ricos, mas entre chavistas e anti-chavistas. O país caribenho ficará rojo, rojito com o sangue dos embates que se aproximam. Por hora, já está vermelho de ódio.
1 Vermelho, vermelhinho é a referência de Hugo Chávez a seus militantes e seguidores, pois costumam usar camisa vermelha, símbolo da esquerda.
*Pedro Sobral é licenciado em história pela Universidade Católica de Pernambuco, bacharelando em ciências sociais pela UFPE, professor da rede pública e particular e cinéfilo nas horas vagas.
About Me
- Miradouro Cinematográfico
- Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)