terça-feira, 27 de abril de 2010

PostHeaderIcon Sonata de Outono: embate de gigantes em mais um drama visceral de Ingmar Bergman






Se por um lado muitos filmes mereceriam a honra de inaugurar este blog, por outro não é menos verdade que nada melhor que um “bom Bergman” para fazê-lo. Eis o que é “Sonata de Outono”: Ingmar Bergman na sua melhor forma. Partindo de um enredo simples; mãe (Ingrid Bergman) é uma pianista famosa que resolve visitar sua filha (Liv Ullmann) a convite desta, após longo tempo sem se verem, Bergman explora com maestria os rancores e ressentimentos de uma filha que se sentia sempre em segundo plano desde a infância. As atuações são simplesmente impecáveis; Ingrid interpreta a mãe forte, segura, imponente, bem sucedida, elegante; Liv incorpora uma mulher retraída, insegura, hesitante, sempre querendo agradar. Aliás, a caracterização de Liv atrás de um óculos de grau redondo que não lhe cai bem e sempre de cabelos presos, com semblante desgastado lhe dão uma aparência de mulher não só fraca, mas também feia (o que pareceria impossível levando-se em conta ser Liv Ullmann uma das mulheres mais bonitas de toda a história do cinema, sendo sua beleza algo à parte, que contrasta com os atrativos estéticos vulgares de boa parte das atrizes de ontem e hoje).
Um exemplo pontual do show de interpretação das duas atrizes é a cena do piano, em que primeiramente a filha toca um prelúdio de Chopin para a mãe; a execução da filha é deficiente não só do ponto de vista técnico (ao contrário da mãe ela não fez da música sua profissão), mas é acima de tudo hesitante; além de técnica, falta entrega, falta alma. Nesta cena vê-se a filha de perfil, com rosto tenso, preocupada em agradar a mãe; esta aparece com rosto posicionado frontalmente à câmera e as oscilações de seu semblante por si só já valem o filme. Percebo descontentamento com a interpretação da filha, tristeza por isso e mesmo constrangimento em ter-lhe dito que gostaria de vê-la tocar e perceber que tal pedido fora um erro. Mas certamente o semblante de Ingrid Bergman nesta cena transmite muito mais que isso. Terminada a execução da filha, fica patente o descontentamento da mãe, ainda que esta tente escondê-lo. Põe-se então ela a interpretar o mesmo tema de Chopin; aqui há espaço inclusive para uma breve aula sobre o conceito da música de tal artista, que é triste, porém intensa. De fato o personagem de Ingrid demonstra verdadeira paixão e entrega pelo seu ofício e certamente é este o único âmbito no pelo qual ela consegue ter paixão. Isso ficará claro no decorrer do filme. Ver-se então a mãe de perfil ao piano, seu semblante expressando total entrega à execução, ao passo que o rosto da filha, em close frontal, expressa admiração pela técnica apurada e alma posta na interpretação da mãe, somada ao sentimento de submissão, quiçá humilhação por considerar-se inferior a mãe em todos os âmbitos.
Pode-se dizer que o filme é dividido em basicamente duas partes: a primeira vai desde os preparativos do casal para a chegada da mãe da esposa até o momento em que a mãe vai dormir, após o jantar. A segunda (que ocupa a metade do filme ou quase isso) se inicia com o encontro de mãe e filha na sala durante a madrugada, momento catártico por excelência do filme, onde a filha, após alguns copos de vinho, despejará todas suas frustrações e ressentimentos sobre a mãe. A caracterização de tal embate (a mãe tenta defender-se, mas é sempre confrontada com uma nova acusação que constroem um mosaico de egocentrismo e indiferença constantes em sua personalidade) é-nos apresentada de maneira visceral, algo que Bergman faz como ninguém (sempre cercado por atores impecáveis, é bom frisar – ao menos naqueles filmes que podemos chamar de “bons Bergmans” – inclusive os coadjuvantes).
A ironia trágica se faz presente na cena em que Charlotte (a mãe) diz a Eva (a filha que a convidou) que não está em condições de ver Helena (sua outra filha que, devido a doença, perdeu a capacidade de falar de locomover-se e fora colocada num asilo por sua mãe, mas fora acolhida por sua irmã Eva em sua casa após está perder seu filho, que morreu afogado) naquela noite, mas acaba cedendo devido as insistências de Eva, alegando “eu não tenho escolha”. Seu cinismo diante de sua filha doente seria cômico se não fosse trágico (ou melhor, é cômico e deprimente simultaneamente). Consumida pela culpa, Charlotte sonha (um pesadelo para ela) com Helena e acorda. É a partir daí que teremos o “acerto de contas” entre Eva e sua mãe, sendo este interrompido apenas pelo chamado de Helena, a quem Eva vai prestar assistência, segurando sua mão até que ela volte a dormir.
Merece destaque, neste embate, o momento em que o personagem de Liv se exalta e sua voz torna-se firme, sua postura, imponente. Pode-se dizer, aliás, que, progressivamente, mãe e filha trocam de papéis momentaneamente; sem abrir mão de sua elegância e imponência, Charlotte se permite até mesmo chorar ao ser confrontada com toda a frieza e indiferença que dirigiu aos seus familiares, bem como a postura autoritária dirigida especificamente à Eva, impondo-lhe seus próprios gostos. Merece menção neste mister o fato (mencionado não por Eva, mas por Viktor, seu marido, durante o jantar, sem que sua esposa estivesse presente) que fazia 7 anos que Charlotte não os visitava; disso se infere que ela sequer chegou a ver seu neto, que faleceu pouco antes de completar 4 anos. De fato, a afirmação de Charlotte, segundo a qual “só através da música podia expressar o que sentia” mostra-se deveras coerente. Temos então, mais uma vez alguém bem sucedido profissionalmente e nitidamente fracassado no âmbito da vida privada, como já acontecerá em “Morangos Silvestres” (1957, outro bom Bergman). Aliás, me dei conta de que o tema da doença também não aparece aqui pela primeira vez (já estava presente em “Gritos e Sussurros”, de 1972, por exemplo).
Após “Sonata de outono” (1978), Bergman realizaria (até onde sei) menos de meia dúzia de filmes, de modo que quando filmou esta obra já possuía uma vasta filmografia, e já havia alcançado a consagração há muito tempo. Mesmo assim, considero esta uma de suas melhores obras; a exemplos de outras do mesmo cineasta ela faz-nos pensar, nos faz rever nossas atitudes. O difícil é fazer-nos mudar...

Alberto Bezerra de Abreu 02-04/03/2010

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Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)
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