segunda-feira, 24 de maio de 2010

PostHeaderIcon A perfeita fruição do tempo em Polícia, Adjetivo





*Pedro Sobral


O que é, por conseguinte, o tempo?
Se ninguém me perguntar eu o sei;
se eu quiser explicá-lo a quem me fizer essa
pergunta, já não saberei dizê-lo. (Santo Agostinho)


Curiosa a abordagem do tempo na narrativa do filme Polícia, Adjetivo (Politist, Adjectiv, Romênia, 2009, 115 minutos), de Corneliu Porumboiu. Na película nos é mostrado o dia a dia de um jovem policial romeno – o ator Dragos Bucur, completamente integrado à personagem – em sua benevolente investigação sobre a vida de um garoto que fuma haxixe e compartilha a droga com dois colegas de colégio.
Porumboiu, que já havia filmado À Leste de Bucareste (2006), mostra uma Romênia por um lado sequiosa de adentrar nas práticas da Europa contemporânea, por outro, ainda presa ao ranço de mais de duas décadas do regime comunista (sinônimo de atraso) personificado na figura do ditador Nicolae Ceausescu.
Para o jovem policial, o fato de um garoto fumar haxixe de quando em vez é considerado um delito de menor – talvez, minúsculo – potencial ofensivo. Intui, de forma humanista e depois de ter viajado na lua-de-mel à Itália, que as leis romenas mudarão em relação ao consumo de entorpecentes e se tornarão mais brandas – uma forma do país oriental ser identificado junto aos outros europeus. Como trabalhador livre, mas recém-egresso de uma tradição totalitária que perpassava conditio sine quae non todos os governos da Europa do Leste, o policial se submete a escrever relatórios pormenorizados acerca da rotina do garoto fumante. Sua investigação vai ao ponto de cronometrar os minutos gastos pelo adolescente em suas baforadas. Tudo isso, claro, é posto nos relatórios, servindo-se de uma linguagem pretensamente técnica, que soa, ao menos para um brasileiro, mais como literatura fantástica, devido ao nonsense da situação.
Polícia, Adjetivo é um filme de grandes qualidades: mostra-nos um retrato da vida diária de um país fora dos noticiários internacionais, por seu papel reduzido na cultura e comércio mundial, e talvez também por ter sido integrante da “Cortina de Ferro”; há a atuação segura de Dragos Bucur e o desfecho – sem concessões – da obra, no momento em que o delegado ao qual o jovem policial é subordinado se serve de um dicionário (valendo-se de sua autoridade em grande medida) para enterrar as pretensões do agente da lei de deixar o jovem drogado persistir, incólume, na sua vida de fumante e proto-traficante. O transcorrer lento do tempo, as demoradas tomadas em que se focaliza o protagonista por minutos a fio são, entretanto, os aspectos mais intrigantes do filme.
Depois de um dia de trabalho o policial volta para casa, cumprimenta a esposa e segue para a cozinha: esquenta a sopa, põe o caldo no prato, corta em pedaços o pão com as mãos, joga-os tal qual iscas na sopa quente e começa a comer. Na sala do modesto apartamento, a esposa vê um vídeo na internet – provavelmente no You Tube – de uma cantora local. O vídeo termina (na primeira exibição vinham legendas em português, era uma música romântica), a esposa vê uma vez mais. Termina a segunda exibição, ela põe novamente. Enquanto isso, na copa, a câmera estática filma o perfil do policial que segue sorvendo o caldo quente, fazendo o ruído característico de quem ou não recebeu a educação adequada para se portar à mesa, ou simplesmente está demais à vontade – e daí afrouxa as regras (nessa cena fiquei imaginando o quê viria a seguir: ele enfiará o dedo mínimo no ouvido para tirar cera?); a esposa continua ouvindo a mesma canção no computador. O policial, depois de terminar a sopa, pega outro prato. Come lentamente. Há, ademais, os takes em que o policial espia o adolescente se drogando por minutos. Ou quando escreve seu relatório burocrático, repleto de minúcias sobre o nada que observou.
A idéia do físico Einstein acerca da quadrimensionalidade do universo – as três mais óbvias acrescidas à do tempo, nunca fez tanto sentido quanto no filme Polícia, Adjetivo. A possibilidade de espiar os momentos romanescos das pessoas comuns foram registrados de modo hiper-realista na película de Porumboiu. Um deleite para os adeptos do voyeurismo e fãs de Big Brother em geral.


*Pedro Sobral é licenciado em história pela Universidade Católica de Pernambuco, bacharelando em ciências sociais pela UFPE, professor da rede pública e particular e cinéfilo nas horas vagas.

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Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)
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