quinta-feira, 6 de maio de 2010

PostHeaderIcon Cine PE 2010sexta-feira: criatividade, humor e filmes intrigantes

Zé(s)
Amigos bizarros do Ricardinho

Quando a chuva chegar

Não se pode viver sem amor




Minha terceira noite no Cine PE 2010 foi surpreendentemente positiva. A homenageada da noite foi a atriz Júlia Lemmertz (sua fala aumentou minha curiosidade acerca da obra de Raduan Nassar, autor de “Lavoura Arcaica”, transformado em filme homônimo, o qual está entre meus favoritos de todos os tempos e de “Um copo de cólera”, também transformado em filme, o qual ainda não assisti). Mais uma vez, os representantes quando iam ao palco apresentar seus filmes faziam menção ao tamanho agigantado do público (o qual além do tamanho é deveras participativo, não raro sendo bastante generoso nos aplausos); duas falas me chamaram muito atenção: numa delas, alguém afirmara ainda ter esperança no país ao ver o público (formado sobretudo por jovens, o futuro da nação), vibrando com os filmes de forma tão intensa quanto se costuma vibrar nos estádios de futebol (não é a toa que noutro dia o evento foi chamado de o Maracanã e a Bombonera – vide resenhas anteriores sobre o evento – do cinema nacional); a segunda fala tratava da falta de divulgação dos curtas-metragens; não se posicionando sobre a pertinência ou não da lei que obriga a exibição de curtas antes da exibição de longas (acho muito pertinente, pois há curtas excelentes, ao passo que os trailers geralmente exibidos são horríveis), a pessoa que discursava chamou atenção para o fato de que os filmes são feitos com dinheiro público e para ninguém assistir. Colocação deveras lúcida acerca de um problema sério e muito pouco debatido.
Antes do início da mostra competitiva, tivemos a exibição do vencedor do concurso Celucine (filmes de até 3 minutos realizados em celular!) do ano passado. Eu tivera a oportunidade de assistir os finalistas justamente na única noite do Cine PE na qual compareci em 2009 e meu favorito foi o vencedor. Trata-se de do filme: “A palavra mais difícil” de Bruna Baitelli; a temática do concurso era “de cabeça para baixo” e o filme mostrava um casal, estando a mulher de pé no mesmo ângulo que nós, enquanto o homem estava em pé num ângulo que ficava de cabeça para baixo em relação ao público; curiosamente, o lugar sobre o qual ele pisava não se assemelhava minimamente a um teto, mas era idêntico ao cenário sobre o qual a mulher estava de pé (indicando certamente uma metáfora); ambos realizavam atividades cotidianas, até que ele escrevia a palavra “desculpa” num grande papel e mostrava para ela; na cena seguinte via-mos ambos deitados, agora num mesmo plano, sem estarem um de cabeça para baixo em relação ao outro. Achei-o belíssimo, de uma criatividade e de uma sensibilidade surpreendentes e encantadores (a parte técnica, claro, era simples).
Iniciando a mostra de curta em competição tivemos “Se meu pai fosse de pedra” (Maria Camargo, RJ); filha homenageia pai (artista plástico), autor de esculturas (abstratas) em mármore. O filme, apesar de interessante e bem feito, me pareceu demasiado pessoal (a animação “Eu queria ser um monstro”, exibida terça-feira também fora uma homenagem do realizador a seu pai, mas isso só ficava claro no final da obra, ao passo que, em minha opinião, o curta de Maria Camargo não é tanto a história de um artista que falecera, mas antes da filha deste – a própria – e seu respeito a admiração pelo artista/ pai). De modo que, apesar de o artista aparecer mais que ela (há diversas cenas com depoimentos dele), é sua filha o personagem principal do filme, ao menos foi essa minha impressão. O que achei de mais interessante foi quando a filha mencionou uma frase do pai: “se eu morrer minha obra permanecerá” (ou algo do tipo), ao que ela replicou que antes de artista ele era um homem. Após sua morte, ela afirma que ambos estavam certos. De fato, são perspectivas diferentes, ambas válidas. Só este questionamento já vale o filme, que foi mais aplaudido do que eu esperava.
O curta seguinte foi o intrigante “O plano do cachorro” (Arthur Lins; Ely Marques, PB); na madrugada (de João Pessoa, creio), vemos um corpo humano estendido no meio da rua, ocupando uma das faixas; outro homem arrasta o corpo para que este fique exatamente no meio da rua, entre as duas faixas; após isso, um carro passa ao lado dele, sem tomar conhecimento da situação; depois passa um ônibus (e a câmera passa a focalizar o interior do veiculo que é parado pelo motorista, que desce – para analisar o suporto cadáver, inferimos – e sobe, prosseguindo a viagem). Após tudo isso, o homem vivo urina em cima daquele que supostamente está morto; passa mais um carro sem parar ou sequer diminuir a velocidade e logo depois o homem deitado (que além de imóvel, estava com sangue na cabeça), se levanta e caminha ameaçadoramente em direção ao outro que se põe a correr. A partir daí o filme se torna ainda mais curioso: a perseguição prossegue até o amanhecer, até que ambos chegam a um terreno desabitado e põem-se a brigar (nada de socos ou chutes, apenas os dois rolando no chão, um tentando dominar o outro, num embate deprimente que não dá em nada); a isso tudo assiste um cão o qual, após algum tempo, vai embora. Entenderam a menção ao cachorro do título? Soou-me como uma grande gozação. Gostei, pois me deixou intrigado, mas o público aplaudiu moderadamente.
O próximo curta foi “Zé(s)” (Piu Gomes, RJ), filme que narra o encontro do célebre diretor de teatro Zé Celso e do mecânico Zé Perdiz; na oficina deste (há décadas) se realizavam peças de teatro. Mostram-se falas de ambos, a forma que encontraram de se opor à ditadura através do teatro (o primeiro produzindo, o segundo cedendo o local); é deveras interessante a analogia de Zé Celso entre teatro e oficina mecânica, o corpo do ator sendo moldado duramente, como uma bigorna; não menos interessante é a fala de Zé Perdiz, o qual, perguntado se o local do qual era dono seria uma oficina ou um teatro, respondera: de dia é uma oficina mecânica, a noite, um teatro. Me remeteu diretamente ao saudoso “Garagem” (Recife, próximo ao Circo Maluco Beleza, berço do festival Abril pro Rock), que de dia era uma borracharia e a noite, um bar (o qual foi demolido ano passado, sem que este que vos escreve tenha tido a oportunidade de lá comparecer uma vez sequer). Como a realidade tende a ser dura, a oficina de Zé Perdiz (em Brasília) também foi demolida, para construção de grandes prédios. A ganância parece vencer a poesia, mas a denúncia via curta alimenta alguma esperança.
Em seguida tivemos “Amigos bizarros do Ricardinho” (Augusto Canani, RS), um curta de humor que apesar de engraçado, não conseguiu me arrancar nenhuma gargalhada. Mas não posso negar ser ele muito legal (e de fato foi sem dúvida o mais aplaudido entre os curtas na noite de sexta). É impossível deixar de mencionar alguns dos casos bizarros citados na obra, como a tia que em cinco partos teve cinco vezes objetos cirúrgicos (até mesmo uma luva!) esquecidos dentro de seu corpo; a prima que viu o namorado morrer em seus braços durante uma dança e (meu “causo” favorito): a tartaruga que fugiu de casa e voltou um ano (!) depois. Quando o personagem principal contava tais histórias sempre alguém dizia “que piada sem graça” e ele replicava dizendo ser verdade. Na fala do responsável pelo filme (não era o diretor – que é também o ator principal, o “Ricardinho” do título), afirmou-se que de fato a histórias eram verdadeiras (será possível?).
Para encerrar os curtas da noite, tivemos o peculiar “Quando a chuva chegar” (Jorane de Castro, PA); em linhas gerais, narra a história dum apartamento que desperta nas pessoas um intenso desejo sexual por quem estiver por perto; isso parece ser sabido inclusive por pelos demais residentes do prédio e por quem sequer mora nele. A cena de sexo entre o casal que reside no apartamento “mágico” (abençoado? amaldiçoado?), apesar de nada ter de explícito é muito bonita, sem perder em intensidade (não é demasiado romantizada, expressa tesão, não amor). A peculiaridade da residência me remeteu de imediato a “O anjo Exterminador” de Bunuel (uma ótima referência, diga-se de passagem), de modo a ser este mais um curta realmente interessante.
O único longa da noite foi o surpreendente e intrigante “Não se pode viver sem amor” (Jorge Duran, RJ); o filme até próximo de seu final aparenta ser uma obra convencional (exceto por algumas cenas com o garoto: já no início, ele repete obsessivamente palavras que ocasionam uma violenta ventania; noutro momento, ele chama insistentemente por chuva, e esta de fato vem; antes disso, quando sua mãe estava em perigo, um mendigo pega fogo do nada, supostamente por causa do menino; por fim...). Mas próximo do final as coisas “desandam” (ou melhoram, dependendo da perspectiva) de vez: descobre-se que aquele que imaginávamos ser o pai do garoto na verdade não o é; chega-se a situação surreal de um personagem (Ângelo Antônio) estar em sua casa, com o cadáver de seu pai recentemente falecido (infarto); um assaltante (Cauã Reymond) que já roubara seu dinheiro no táxi que aquele dirigia; mãe e filho pequeno que haviam sidos seus passageiros e foram a sua casa devolver sua carteira, que ficara com o garoto e por fim, a namorada do assaltante, que fora chamada à residência por este; o assaltante apresenta sua vítima como alguém que lhe contratara para fazer um inventário (!); finalizando a absurda situação, o garoto começa a clamar para que o cadáver do idoso acorde e isso nos leva a cena final na qual alguns personagens (até onde entendi) trocam de identidade. No decorrer do filme aparecem algumas cenas de flash-back que dão indícios importantes de como montar o quebra cabeça deste enredo nada convencional. O filme acaba, portanto, sendo um tanto difícil para nós, demasiado acostumados com as facilidades de narrativas lineares, desprovidas de ambigüidades e desafios a inteligência e a sensibilidade do espectador. A obra me surpreendeu e me agradou deveras. E acima de tudo, me deixou intrigado.
Noite de poesia (“A palavra mais difícil”), crítica social (“Zé(s)”), humor (“Amigos bizarros do Ricardinho”) e filmes intrigantes (“O plano do cachorro”, “Não se pode viver sem amor”) a sexta-feira do Cine PE surpreendeu positivamente.

Alberto Bezerra de Abreu, maio 2010

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Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)
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