quarta-feira, 15 de setembro de 2010

PostHeaderIcon Morangos Silvestres: retrato psicanalítico da culpa numa velhice misantrópica





Existem obras que conseguem se tornar marcantes para nós. Acredito haver pelo menos dois motivos para tal: sua capacidade de nos fazer refletir, bem como de nos propiciar estreita identificação com algum personagem ou situação. Pessoalmente, enxergo ambas as características em “Morangos Silvestres” (Smultronstället, Suécia, 1957) de Ingmar Bergman. Tive recentemente a oportunidade de mais uma vez o reassistir, dessa vez em película na sessão de arte/ clássicos do São Luiz. Meu contato inicial com a obra se dera em 2006 e a paixão fora imediata e arrebatadora. Devo tê-lo assistido pelo menos uma vez mais, antes desta última, mas fazia pelo menos um ano que não voltava a ele. Assistindo-o no cinema consegui empreender uma visão mais crítica e afastada, percebendo alguns deslizes nítidos (que não só eram-me imperceptíveis, como impensáveis nas primeiras vezes que o contemplei), os quais, no entanto, pouco irão acrescentar a este texto.
Antes de adentrarmos no enredo, gostaria de recorrer a alguns dizeres de Bergman, extraídos de um livro com entrevistas do cineasta, intitulado “O cinema segundo Bergman” (Ed. Paz e Terra, 1977); como “Morangos Silvestres” é de meus filmes mais caros, sinto-me impelido a tentar empreender uma análise mais aprofundada dele, ainda que sem estender-me em demasia. Pois bem, no livro mencionado, Bergman esclarece que o mote da obra se baseia num sentimento de nostalgia em relação à infância (chega a citar Maria Wine, segundo quem “dormimos no sapato da nossa infância” [.p.109]); temos, portanto, um forte indício psicanalítico, ao menos da psicanálise freudiana. Ainda que o cineasta negue tal influência (ao menos no âmbito consciente da criação), tendo afirmado “O lado psicanalítico do filme não me parecia nem um pouco evidente. É uma etiqueta que outros colocaram nele, depois” (p. 115), sua posição me parece equivocada, pois os sonhos possuem papel fundamental em “Morangos silvestres”, sendo que pelo menos o primeiro – na minha interpretação – expressa um desejo (novamente Freud).
Para quem conhece Bergman minimamente, não é necessário mencionar que a obra traz aspectos bastante pessoais; no entanto, a mim parece que este tem alguns indícios auto-biográficos, sensação esta que é corroborada pela fala do próprio, ao afirmar: “este homem deveria ser um velho egocêntrico, cansado, que tinha se afastado completamente do mundo que o cercava, como eu mesmo o fiz” (p. 109); é curioso salientar que, apesar de não ser exatamente um velho quando realizou tal obra, em documentário recentemente produzido sobre sua vida, intitulado “A ilha de Bergman”, o cineasta aparece vivendo sozinho e isolado, na célebre e emblemática ilha de Faro, já bastante idoso. Tenho forte impressão que o médico Isak Borg e o cineasta Ingmar Bergman tiveram em comum o fato de darem ênfase em suas vidas profissionais em detrimento de suas relações pessoas/ afetivas. Passemos então ao filme propriamente dito.
“Morangos silvestres” narra a história de um velho misantropo, egocêntrico e egoísta, porém educado e refinado, que obviamente não cultiva relações pessoais prósperas, mas é um competente médico que viajará para receber uma homenagem acadêmica. Seu nome, como dito acima, é Isak Borg (nome que pode ser traduzido como “fortaleza de gelo”, numa escolha proposital de Bergman, que, aliás, afirmou só posteriormente ter percebido que o personagem tem suas mesmas iniciais); tal personagem é interpretado pelo veterano Victor Sjöströn, diretor de célebres filmes do cinema mudo sueco, como “A carruagem fantasma” (1921) e “Ingeborg Holm” (1913). Ao decidir ir não mais de avião, mas de carro, acaba tendo a companhia de sua nora Marianne (Ingrid Thulin) que estava momentaneamente separada de Evald (Gunnar Björnstrand), filho único e indesejado de Borg (que, aliás, fora traído pela esposa, a ponto de Evald dizer a Marianne que nem sabe se é mesmo filho daquele que chama de pai), em virtude de seu posicionamento pró-aborto dela (numa de suas falas, quando é surpreendido pela notícia da gravidez, Evald se posiciona veementemente contra ela, afirmando não ser este um mundo bom para se pôr nele um filho). Toda a história gira em torno da viagem de Borg, sendo intercalado por diálogos com alguns interlocutores (entre os quais Marianne é a mais significativa, sendo a única que o enfrenta – aliás, a altivez de Ingrid Thulin merece meu louvor pessoal, bem como o do próprio Bergman, que afirmou “Uma pessoa qualquer não poderia responder a uma personalidade tao impressionante quanto Victor Sjöström” (p. 124)), bem como por lembranças e sonhos do protagonista (as primeiras o transportam para sua juventude; os últimos apontam sua culpa e sua condição vegetativa).
Borg tem 78 anos (isso é mencionado), e já no início do filme, destaca sua dedicação à ciência e o caráter arisco de sua personalidade, ao se auto-intitular meticuloso e afirmar ter tornado sua vida, bem como a daqueles que o cercam, difícil. Ainda no início da obra, numa das cenas mais espetaculares de toda a história do cinema, somos transportados a um sonho do protagonista: Borg se encontra sozinho em uma cidade que aparenta estar completamente deserta; avista um grande relógio pendurado sobre uma casa, estando ele sem ponteiros; tira então um velho relógio (daqueles presos numa corrente, que não possuem pulseira) e constata também nele a inexistência de ponteiros (o que parece-me indicar estar ele parado no tempo e/ou sua relatividade/ ausência de sentido)/ a seguir, avista alguém de costas que, ao se virar, ostenta uma estranha fisionomia, com olhos e boca fechados, aparentemente colados (o que pode indicar incomunicabilidade); em seguida, tal pessoa se dissolve, restando somente suas roupas (mostrando talvez a dissolução das relações pessoais do protagonista: a única pessoa que encontra se dissolve). Vemos então uma carroça dobrar a esquina (uma possível alusão ao filme “A carruagem fantasma” de Sjöströn); uma de suas rodas se solta e rola em direção a Borg que se esquiva, assustado, sendo quase atingido por ela. Na seqüência, o veículo se engancha num poste e ao tentar desvenciliar-se do empecilho, derruba um caixão que cai entreaberto; ao avançar em direção a ele, Borg vê uma mão se erguendo e em seguida, constata perplexo ser ele mesmo o suposto cadáver (acredito haver aqui uma inversão de papeis: um Borg literalmente morto buscando a vida – ele puxa o braço do Borg que o fita de fora do caixão – e um Borg que apesar de vivo, não vive, mas sobrevive, vegeta, sendo, portanto, um morto-vivo). Não bastasse a soberba – e verossímil – caracterização de um sonho (contemplando de forma bastante convincente suas dimensões onírica e alegórica), tal cena é também um primor estético, constituindo simultaneamente a mais bela e realista apresentação de um sonho que já vi no cinema.
Como dito anteriormente, Marianne é a única que se atreve a confrontar Borg, contribuindo assim para abrir-lhe os olhos, ao afirmar que nele o egoísmo está disfarçado em civilidade e charme, bem como mencionando suas opiniões categóricas (ela cita um exemplo específico do qual não me recordo, mas que é certamente pejorativo em relação ao interlocutor do velho médico). Ao encontrar a jovem Sara (Bibi Anderson), acompanhada de dois jovens que disputam seu amor, Borg relembra sua juventude (coisa que também faz ao visitar a casa onde ele e sua família morava nesta época e onde vê sua amada – que apesar de ser sua namorada, será desposada por seu irmão – colher os morangos silvestres que dão nome ao filme); tais lembranças são mostradas em flashback e constituem, e minha opinião, um momento menos rigoroso do filme (atuações medianas, cenas não tão bem realizadas/costuradas quanto as que trazem os atores principais); cabe salientar um ponto destacado na resenha do filme presente no livro “1001 filmes para assistir antes de morrer”: ao intercalar tais sonhos e lembranças com conversas que vemos em tempo real, Bergman nos apresenta traços subjetivos e objetivos do protagonista, evitando a perspectiva unilateral do vislumbramento do mundo exclusivamente pelos olhos de Borg.
Outra passagem bastante significativa e esclarecedora é aquela onde Borg vai visitar sua mãe (não lembro bem sua idade, mas é na casa dos noventa, se não me engano), acompanhado por Marianne, que ao ver a mãe de seu sogro, percebe que a frieza e egoísmo de seu esposo fora-lhe transmitidas de geração em geração (aqui, pareceu-me que além do aspecto cultural, sugeriu-se, ou mesmo afirmou-se um componente hereditário no sentimento de frieza do qual discordo). Antes disso, passam num posto e o frentista (interpretado por Max von Sydow), após atender Borg, recusa seu pagamento, afirmando que não esqueceu o que ele fizera (não se menciona o que seja, mas deduz-se que seja uma assistência médica, provavelmente gratuita ou a preço simbólico), o que mostra que o protagonista não só é profissionalmente competente, mas bem quisto por pessoas que não tiveram convivência íntima com ele. Porém, o próprio não deixa de ter consciência de seus espinhos, como quando, ironizando a homenagem que irá receber, diz a si próprio que deveria receber o título de idiota honorário (de fato, parece que o desperdício de vida de alguém que é culto e inteligente é maior que o das pessoas comuns). Porém, sua compreensão acerca de o quão desagradável é para os outros é ambígua, pois aparenta não só surpresa, mas mesmo certa perplexidade ao perceber que a rejeição a ele é maior do que supunha (ela afirma que Evald o respeita, mas também o odeia). Ainda que não se não se desça aos aspectos mais viscerais do ressentimento (como faria em “Sonata de outono” – já resenhado neste blog http://miradourocinematografico.blogspot.com/search?updated-min=2010-04-01T00%3A00%3A00-03%3A00&updated-max=2010-05-01T00%3A00%3A00-03%3A00&max-results=1 – ou em “Saraband”), Bergman não deixa de apresentar (como sempre), relações familiares deveras conflituosas, mesmo que não vislumbremos as brigas/ discussões presentes nos dois filmes citados a pouco.
As relações de Borg não são difíceis apenas com seus familiares, mas também com sua governante: ambos vivem as turras, constituindo dois idosos um mais rabugento que o outro. Numa das cenas de humor (sarcástico) do filme, Borg, após começar a ter uma maior consciência de quão desagradável é para os demais, age gentilmente com a governante que, surpresa, pergunta se ele está doente. Outra das raras cenas nas quais a harmonia se sobrepõe aos embates/ tensões/ lamentações é aquela na qual Borg, Marianne e os jovens fazem uma refeição ao ar livre e há verdadeira comunhão durante o recitar de uma poesia (não lembro quem começa, se o próprio Borg ou um dos rapazes, mas lembro que este é complementado por Marianne). A tranqüilidade não é inalcançável afinal.
Outra cena antológica, a qual – penso eu – pode-se dizer que se destaca da obra como um todo é a retratação de mais um sonho de Borg, no qual ele é julgado, numa mistura de tribunal judicial e exame de medicina (novamente a ambigüidade dos sonhos); primeiramente, é-lhe pedido que examine uma paciente; mal começa a fazê-lo e constata – dizendo-o ao examinador – que a paciente esta morta, mas basta proferir tal diagnostico para que ela se ponha a gargalhar escarnecidamente. Pede-se em seguida que ele profira o mandamento máximo de um médico e ele se surpreende ao perceber que esqueceu; o veredicto do examinador é o de incompetência por parte do velho médico; diante de uma pequena bancada que nada fala, é ele também condenado por indiferença, egoísmo e falta de consideração, tendo como pena a solidão. Acredito ser nesta cena que lhe chamam de frio como gelo; por fim, Borg dar-se conta de que pensou saber tanta coisa, mas não sabe de nada (novamente a questão do acúmulo de conhecimentos refinados e cultura erudita que nada contribuíram para algo mais essencial que a erudição: a sabedoria do bem viver).
Pessoalmente, acredito que pela forma com que Bergman conduziu o filme, qualquer desfecho categórico seria insatisfatório, de modo que o final, ao conseguir não ser nem otimista nem pessimista de modo enfático, sem também cair na apatia, encerra-se com um desfecho convincente e equilibrado, nisso diferindo de “Viver” (de Akira Kurosawa), o qual, ao converter o desperdício de uma vida em redenção derradeira encerra-se de maneira otimista. Até onde recordo, tal palavra passa longe dos filmes mais viscerais de Bergman.

Alberto Bezerra de Abreu, setembro de 2010

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Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)
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