quinta-feira, 12 de abril de 2012
Raul – o início, o fim e o meio: um documentário completo, porém, não equilibrado
23:23 |
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Miradouro Cinematográfico |
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Antes de adentrar propriamente no filme “Raul – o início, o fim e o meio” (2012, Brasil, dirigido por Walter Carvalho), faz-se necessário tecer um breve comentário sobre sua divulgação: vi muito pouca propaganda dele na mídia e mesmo assim me surpreendi com a tímida presença da obra nos cinemas de Recife, haja vista a imensa popularidade de Raul Seixas, a qual não se restringe a uma determinada região (como no caso de Luiz Gonzaga) ou a uma determinada classe social (como – ao menos assim me parece – acontece com Chico Buarque); em termos mais explícitos: Raul foi deveras popular em todo Brasil (ou pelo menos em muitos locais do país) e entre diversas classes sociais, o que torna, a princípio, bastante estranha ausência de uma forte propaganda divulgadora do filme. Contudo, não me foi necessário pensar muito para chegar a uma resposta para tal descaso: penso dever-se ele ao fato de o filme tratar-se dum documentário, gênero cinematográfico não muito popular/rentável no Brasil. Tome-se como exemplo o renomado cineasta paulista Eduardo Coutinho, referência no âmbito dos documentários cinematográficos, mas ignorado pelo grande público. Igualmente servem de exemplos os filmes não documentários “Cazuza – o tempo não para” (2004, Brasil, dirigido por Sandra Werneck e – justamente – Walter Carvalho) e “Dois filhos de Francisco” (2005, Brasil, dirigido por Breno Silveira), ambos bastante divulgados pela mídia hegemônica.
No que concerne à temática do filme, não há como começar a presente exposição sem mencionar o fato central (que nomeia o presente texto): trata-se dum documentário completo. Ao optar por não se centrar numa época específica da vida de Raul, mas em toda ela, o cineasta pretende uma abordagem total de figura de Raul Seixas: artista, homem e mito. A exposição se inicia mostrando imagens de Raulzito ainda (pré)adolescente, de gola levantada e topete, imitando seu ídolo (não só de juventude), Elvis Presley, e já naquele tempo bebendo e fumando. Neste início de filme são expostos alguns depoimentos interessantes de Waldir Serrão, amigo de juventude, que mostra o local onde se reunia o “Elvis rock club”, o modo peculiar como os jovens fãs baianos de Presley se cumprimentavam, entre outros aspectos curiosos. A ênfase no caráter de rebeldia que o rock representava para os jovens da época (ainda mais no nordeste, onde o novo estilo musical ainda não havia se popularizado) é central para uma melhor compreensão da figura de Raul e é expresso a contento no filme.
No que concerne ao início da carreira musical de Raulzito, são apresentados depoimentos de produtores, tratando desde o disco “Raulzito e os Panteras” (1968) e “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10” (1971), até seu disco de estréia em carreira solo, “Krig-há, Bandolo!” (1973), contendo clássicos como “Mosca na sopa”, “Al Capone”, “Metamorfose ambulante” e “Ouro de tolo” (esta última sendo bastante elogiada por Caetano Veloso, que inclusive interpreta um trecho dela em voz e violão).
Numa passagem que adquiriu um significado mais abrangente para mim através do filme, alguém menciona a inovação de Raul ao misturar rock com baião em “let me sing, let me sing”. Ora, embora já houvesse atinado para tal fusão eu ignorava ter sido precursora, como é apontado no documentário. A menção ao fato (por mim já sabido) de que no Brasil houve até passeata contra o uso da guitarra elétrica (convém salientar que embora o termo “guitarra elétrica” seja redundante no Brasil, ele não o é noutros países), bem como o apontamento em dois momentos do filme (se não me engano, um deles provindo do próprio Raul), de que Raulzito era fã de Luiz Gonzaga levaram-me a perceber um aspecto complementar desta fusão de rock e baião: tratou-se igualmente da fusão de dois reis: Elvis Presley e Gonzagão.
Outro entrevistado que merece destaque é Sylvio Passos, fundador do Raul Seixas Oficial Fã-Clube (1981) e amigo de Raultizo, tendo recebido do próprio grande quantidade de gravações não lançadas em disco. Também as várias esposas de Raul aparecem no documentário, exceção feita à primeira (Edith Wisner), de quem é lida uma pequena carta onde ela justifica sua opção por não conceder entrevista; as demais companheiras do “maluco beleza” (Glória Vaquer; Tania Mena Barreto; Kika Seixas e Lena Coutinho) fornecem depoimentos importantes e elucidativos (em minha opinião, sobretudo as duas últimas). Também a empregada/governanta de Raul na época de seu falecimento é ouvida, mas ao proferir afirmações como a de que nunca viu o cantor embriagado parecem demasiado forçadas. Kika menciona episódios em que Raulzito bebia, vomitava, bebia novamente, este processo de repetindo inúmeras vezes até que ele conseguisse reter algum álcool no corpo. Outra pessoa (Lena, se não me engano) fala de uma ocasião em que o músico estava todo vomitado no quarto e de como achava necessário ele passar por isso, chegar ao fundo do posso para querer sair. Kika afirmou que Raul tentou parar várias vezes, mas não conseguiu, tendo chegado a ser internado contra sua vontade numa clínica de reabilitação.
O escritor Paulo Coelho, mais famoso parceiro de Raul nas composições (letras) também aparece no filme; numa de suas afirmações, menciona duas músicas de Raul que gostaria de ter composto com ele: “Maluco beleza” e “Metamorfose ambulante” (surpreendentemente não menciona “Ouro de tolo”, também composta só por Raulzito). O documentário tematiza a aproximação de ambos (foi Raul que procurou Paulo), bem como a insistência daquele para que este compusesse com ele (haja vista que Paulo não só não sabia compor letras – como ele mesmo afirma –, mas inclusive desprezava este caráter mainstrem da música, optando por um viés alternativo, sendo justamente a possibilidade de divulgar a mensagem da “Sociedade Alternativa” para grande número de pessoas o que o convenceu a adentrar neste meio). Neste sentido, aponta-se a influência “mística” que Paulo exerceu sobre Raul que, até então era “meio ateu” (não lembro quem proferiu essa frase, mas recordo ter me pego pensando no cinema: como pode ser alguém “meio ateu”?). O cineasta entrevista um líder do grupo (inspirado em Alester Crowley) do qual Paulo e Raul fizeram parte; numa assertiva deveras interessante, o ancião esclarece que a palavra “demônio” foi deturpada pelo cristianismo, e que Sócrates possuía o seu próprio demônio (mais precisamente, trata-se do termo “daimon”, cujo sentido é divindade, espírito ou gênio, que pode expressar o bem ou o mal, ao contrário do maniqueísmo cristão). É mostrado ainda um depoimento de Raul acerca do que seria o “satanismo” por ele defendido (por exemplo, na música “Rock do diabo”), o qual nada tem a ver com uma ideologia maléfica e destrutiva, mas simplesmente com uma afirmação da liberdade criativa das pessoas (embora o documentário não aponte este fato, parece-me nítida a inspiração que a crítica de Nietzsche ao cristianismo exerceu em Raul). Por outro lado é mostrada uma cena em que ocorre sacrifícios de animais (pareceu-me real, mas não tenho certeza; e vi apenas um dos barbudos, sem conseguir identificar se era Raul ou Paulo, embora a cena tenha sido rápida e talvez ambos estivessem ali). Paulo afirma que eles cometeram excessos e que todos pagaram por isso. Nelson Motta, ao tratar do convite de Raul (e insistência, ante a recusa de Paulo) para comporem letras juntos, afirma que Paulo, num raro momento de humildade/modéstia, confessara que não sabia escrever letras. A afirmação de Motta é importante, pois, para quem presta atenção em detalhes fica patente a grande vaidade de Paulo Coelho. Este menciona inclusive que ele e Raul tiveram vários desentendimentos, tendo chegado provavelmente (ele não tem certeza!) a trocarem sopapos pelo menos uma vez. Define a relação entre ambos como um casamento sem sexo, mas o (excelente) registro do último encontro entre eles (após muitos anos), realizado em pleno palco, durante a turnê de Raul com Marcelo Nova (sendo este quem combinou tudo com Paulo, sem que Raul soubesse), mostra como a admiração, respeito e quiçá carinho entre ambos não se dissipou, apesar dos desentendimentos, originados principalmente por uma rivalidade entre eles.
Outros dois momentos de Paulo Coelho que merecem destaque no documentário são aquele em que uma mosca atrapalha sua fala (trata-se duma clara alusão à música “Mosca na sopa”, música, aliás, composta apenas por Raul), sugerindo-se que a mosca seria (literalmente Raul). Caso aquilo tenha ocorrido espontaneamente, certamente consistiu em algo deveras significativo, mas, por algum motivo que não saberia explicar, a cena me pareceu planejada, montada, para não dizer forjada. O outro momento consiste na declaração de Paulo, segundo a qual foi ele quem apresentou todas as drogas ao careta Raul, que então só bebia e fumava. Porém, Coelho refuta qualquer responsabilidade pelo desfecho final de Raulzito, haja vista que este já tinha por volta de 27 anos quando foi iniciado no mundo das drogas ilícitas.
Uma parte do filme extremamente significativa para mim foi aquele em que alguém (que não lembro) mencionou os plágios de Raul; para quem não sabe, o músico freqüentemente se apropriava de músicas estrangeiras, compondo letra nova para pôr nelas, sem que isto fosse creditado como aquilo que no Brasil se conhece como “versão”. Segundo este entrevistado, Raulzito justificava tal procedimento alegando que já éramos por demais colonizados e que seu empreendimento consistia numa espécie de expropriação. A importância fundamental de tal declaração reside no fato de que Raul não era um oportunista barato como cheguei a pensar logo que soube destes “plágios”, mas que seu intento era crítico-anárquico (muito bem sacada foi a execução de trecho da música anti-colonialista “Aluga-se” neste trecho do documentário, pois sua letra bem expressa a opinião de Raulzito acerca da exploração que o Brasil sofre enquanto país periférico).
Outro aspecto importante abordado no filme concerne à relação entre Raul e Marcelo Nova; este foi responsável pelo ressurgimento artístico de Raulzito (seu ídolo), através de uma turnê (de ambos) que teve 50 shows e resultou na gravação do disco “A panela do diabo”. O fato é que muitos acusam Marcelo Nova de ter se aproveitado de Raul, mas em depoimentos realmente significativos, ninguém menos que Caetano Veloso (também baiano), afirma não ter notado nenhuma espécie de oportunismo, pelo contrário, percebeu foi a grande reverência de Marcelo Nova para com Raulzito, bem como a sinceridade de suas boas intenções. Assim também me pareceu. Além disso, Raul não era de modo algum ingênuo.
Após ter apontado os momentos do filme que considerei mais significativos, mencionarei pontualmente alguns outros momentos interessantes: o primeiro deles trata-se da homenagem que Raul faz para Glauber Rocha durante um de seus shows; o filme não contextualiza este momento, mas suponho que tal menção de Raul ao cineasta (baiano como ele) tenha se dado quando este morreu. A breve aparição de Tom Zé, cantando a cômica música “A chegada de Raul Seixas e Lampião no FMI” também merece ser mencionada. Quanto ao depoimento do jornalista (e projeto precário de poeta) Pedro Bial, cabe dizer que (para variar), nada de relevante acrescenta. Também me surpreendi em ver a figura do produtor André Midani entre os depoentes, haja vista que numa de suas músicas Raul dá uma alfinetada nela, citando literalmente seu nome. Deve ter sido um desentendimento momentâneo. Por fim, me impressionei ao ver como o neto pré-adolescente de Raul é parecido com ele em sua juventude (cabe salientar que Raulzito só teve filhas).
Em suma, o documentário sobre Raul Seixas é completo, pois trata de todos os aspectos relevantes de sua vida, contornando assim o perigo da pretensão de totalidade, haja vista de que nenhum aspecto fundamental é omitido. Por outro lado, trata-se duma obra que não possui equilíbrio, pois todos os depoimentos são inteiramente favoráveis ao personagem do documentário, tendo como única exceção uma certa alfinetada de Paulo Coelho, onde este afirma que a história do exílio de Raul não foi bem como este contou (e Coelho diz inclusive que se a equipe do filme investigar, constatará o que ele afirmou); no entanto (e aqui há uma omissão do cineasta em se aprofundar no tema), pouco se fala dos problemas de Raul com a ditadura; a única fala acerca do tema além da de Paulo Coelho advém da mãe de Raulzito, que afirma ter ele chegado em casa com as costas ensangüentadas; ainda segundo ela, enquanto lavava as costas do filho, este disse para ela ser rápida, pois havia dois homens na porta do apartamento esperando por ele (trata-se do exílio supostamente forçado). Em sua fala, Paulo afirma que ele é que foi preso (se levarmos em conta o fato de que pessoas famosas possuíam um relativo “escudo”, pois qualquer fato que lhes acontecesse teria grande repercussão, somado ao fato de que Paulo Coelho não era famoso como Raul, seu relato parece verossímil). De qualquer forma, não se trata aqui de um desejo meu de condenação da figura de Raulzito, até porque simpatizo com ele. Trata-se apenas de chamar atenção para o fato de que o culto exacerbado de sua figura contraria as próprias crenças do artista (ao menos assim me parece). Não acho que o filme tenha exagerado neste aspecto, inclusive considero sábia a decisão de não se ter estendido muito as cenas do velório de Raul, bem como o registro de uma das homenagens que todo ano são feitas a ele (se não me engano, na Avenida Paulista, em São Paulo). De qualquer forma, esta pequena ressalva não tira o brilho do filme, que é informativo, divertido, fluído (não é cansativo, como por vezes é o ótimo documentário de Wim Wenders sobre a banda Buena Vista Social Club, ao qual assisti recentemente), constituindo uma ótima pedida tanto para os fãs do “maluco beleza” como para aqueles que, não o conhecendo bem, intentam fazê-lo.
Ps. Dedico esta postagem a meu amigo (e colaborador deste blog) Pedro Tenório, cujo convite me levou a assistir ao filme aqui resenhado.
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- Miradouro Cinematográfico
- Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)
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