A origem: Chistopher Nolan constrói outro profundo labirinto psicológico




Foram dois os motivos principais que me levaram a assistir “A origem” (Incpetion, EUA, 2010, de Chistopher Nolan) no cinema: a temática dos sonhos, pela qual nutro grande interesse (tendo inclusive começado a ler “A interpretação dos sonhos” de Freud ano passado, sem, contudo, concluí-la, devido a outras leituras mais urgentes), bem como o fato de se tratar de uma obra de Cristopher Nolan (diretor de um de meus filmes favoritos: “Amnésia”, de 2000). Aliás, os dois motivos se imbricam perfeitamente, visto que Nolan costuma investir em aspectos psicológicos de seus personagens (aspectos estes que conduzem a trama), recorrendo frequentemente a flasbacks que nos mostram lembranças (curiosamente, não lembro, porém, dele ter retratado sonhos em alguns de seus filmes anteriores que tive oportunidade de assistir – “Batman Begins” (2005), além do já citado “Amnésia”.
Geralmente, os filmes para os quais crio expectativa, insistem em quebrá-las: quando são elas demasiadas, acabo me frustrando (não recordo exemplo recente) e quando são baixas, por vezes me surpreendo positivamente (o exemplo mais próximo foi “Chico Xavier”, de quem esperava muito pouco). Curiosamente, “A origem” é pelo menos o terceiro filme que vi no cinema nos últimos meses em relação ao qual minha expectativa se mostrou correta (os outros dois foram “Alice” de Tim Burton e “À prova de morte” de Quentin Tarantino, os quais confirmaram minha expectativa de serem bem fracos). Porém o diferencial do filme de Nolan em relação a estes últimos é que não o achei fraco; no entanto, foi-me impossível tira-lo da sombra de “Amnésia”, que para mim cheira a apogeu precoce, tal qual “Pulp fiction – tempo de violência”, segundo filme de Tarantino que sequer foi igualado (que dirá superado) por suas obras posteriores.
Dois aspectos em especial me desagradaram em “A origem”: as cenas de ação e a escolha de um astro como protagonista. Não que tais aspectos sejam propriamente negativos, eu é que, no meu gosto pessoal não me agradei deles (minha não tão recente “peitica” com Hollywood, bem conhecida por aqueles que costumam acessar este blog). As cenas de ação são bem feitas e – o mais importante – em momento algum tomam preponderância em detrimento do enredo; entretanto, com “Amnésia”, Nolan conseguira fazer um filme tão inteligente e intrigante quanto “A origem”, se recorrer a elas. Quanto a Leonardo Di Carprio, desempenha bem seu papel e já mostrou em outros filmes que sabe atuar, porém Guy Pearce (protagonista de “Amnésia”), conseguiu, a meu ver, desempenho equivalente, com a vantagem de não ser um astro; aclarando a questão, para os que ainda não entenderam meu incômodo: ainda que não tenha aberto mão de estilo peculiar, digamos assim, “psicologicamente intricado”, ao fazer uso de cenas de ação, somando a estas o recurso a um astro como protagonista, Nolan aderiu a certos padrões hollywoodianos que estavam ausentes em “Amnésia”, que se não me engano era um filme independente. Posta de lado esta ressalva, bem como a comparação (talvez injusta, mas impossível de não ser empreendida por mim) com o filme de 2000, “A origem” se revela um filme realmente bom, e acima da média das produções atualmente realizadas.
O mote do enredo é simples, o que é complexo são seus desdobramentos; Dom Cobb (Di Caprio) “trabalha” roubando segredos industriais nos sonhos (!) dos grandes magnatas; é, porém, contratado para uma missão um tanto diferente: não roubar, mas desta vez implantar uma idéia na mente do herdeiro de um grande grupo de empresas. O braço direito de Cobb afirma ser isto impossível, mas ele o refuta, afirmando que já o fez. Ficamos sabendo já próximo do fim do filme que tal fato se deu com sua esposa; em longo sonho coletivo, eles passaram anos a fio na companhia um do outro, envelhecendo juntos; aparentemente, ela perdeu a noção de realidade, de modo que ele se viu obrigado a lhe plantar a idéia de que aquilo era um sonho (e de fato era), sendo necessário acordar para retornar ao mundo real; não contava ele com um efeito colateral: sua esposa continuaria pensando estar sonhando, mesmo quando em vigília, no mundo real, de modo que se suicida para acordar (ao longo do filme somos informados que no âmbito do sonho, morrer significa acordar, exceto quando se está dopado por grandes doses de sonífero: neste caso, morrer no sonho equivale a cair num coma na vida real); antes de tirar sua própria vida porém, a esposa de Cobb procura três psicólogos/ psiquiatras que atestam sua saúde mental (seu distúrbio se referia “apenas” ao julgar estar sonhando), de modo que ele passa a ser acusado de homicídio (a intenção dela era que também ele se suicidasse, para acordar), e não vê outra saída senão tornar-se um ladrão de segredos nos sonhos alheios.
Os um tanto complexos desdobramentos de tal enredo consistem justamente na inserção de Cobb e sua “equipe” nos sonhos do tal magnata; é interessante perceber que a possibilidade de sonhos compartilhados, no qual alguém extrai informações importantes de outrem constitui conhecimento de domínio público, tanto que não só aquele que o contrata, mas também o alvo da operação estão cientes das invasões que seus respectivos sonhos podem sofrer. Por isso mesmo utiliza-se a técnica do sonho dentro do sonho (que me remete à “A hora do pesadelo”, do simpático Freddy Krueger); dessa forma, a equipe de Cobb traça um plano para descer três níveis no sonho da vítima: um sonho dentro de um sonho dentro de outro sonho; no entanto, algo dá errado e o protagonista se vê forçado a descer ainda mais um nível. Voltaremos a isso.
Há ainda um outro defeito: a falta de criatividade na construção dos sonhos, defeito duplamente grave, tanto pela qualidade do diretor, como pela plasticidade que os sonhos fornecem no sentido de materialização das mais absurdas coisas, sem que se perda a verossimilhança; ao contrário, é justamente o advento do absurdo que torna um sonho verossímil (estar num lugar e ao virar-se encontrar-se já noutro; ver uma pessoa que no momento seguinte torna-se outra, experimentar diversos tipos de estranheza): nada disso há em “A origem”. Para não dizer que os sonhos são de todo decepcionantes, há dois momentos que enchem os olhos: quando, num “treino”, a arquiteta sobrepõe uma cidade à outra, ficando uma de ponta a cabeça em relação a outra (ela literalmente dobra uma paisagem sobre outra), bem como a cena (dupla, primeiramente com, depois sem gravidade) de combate num corredor de hotel, onde a turbulência do local (que se deve ao fato de se estar num sonho dentro do sonho, de modo que no sonho do nível acima estão todos dormindo numa van em queda livre, e tal queda interfere no sonho passado no hotel, que vira balança tal qual a van) faz com que paredes se tornem chão e vice-versa, cena esta que me lembrou “Matrix” (na cena da van e em outras há câmera lenta.
Passemos ao que considero mais importante no filme: sua inserção dentro de um estilo já consolidado de Chistopher Nolan, que sempre explora a psique de seus personagens, flertando com a dúvida acerca do que é realidade ou ilusão. O fato de Cobb por vezes não saber o que é real me remete diretamente a “Amnésia”, onde o protagonista perde sua identidade, a ponto de não se lembrar de alguém que acabou de conhecer e, portanto, não poder confiar em ninguém, não podendo igualmente construir qualquer tipo de relação sólida. Outro aspecto que aproxima os dois filmes é a culpa ostentada pelos protagonistas: Cobb sente-se (e é) responsável pelo suicídio da mulher, por ter-lhe plantado uma idéia que, nas palavras do próprio, cresceu dentro dela como um vírus (nada mais forte que uma idéia, quando realmente acolhida por uma mente, afirma o filme). Leonard, por sua vez, talvez seja culpado pela morte de sua esposa, ao dar-lhe doses excessivas de insulina, devido a seu esquecimento. Em “A origem”, o risco de não saber-se dormindo ou acordado existe para todos, por isso aconselha-se a arrumarem um totem, que ao ser avistado garantiria estarem despertos (confesso que não entendi bem essa idéia, pois por que diabos ele não poderia aparecer no sonho?). O totem de Cobb fora herdado de sua esposa: consiste num pequeno objeto que roda como um pião; tal objeto aparece dentro de um sonho, mas no filme diz-se que só no estado de vigília ele para de rodar (sabe-se lá o motivo!). A culpa de Cobb faz com que ele projete sua esposa nos sonhos em que tenta roubar informações e ela lá está para sabotar suas operações; no caso de encomenda especial de implantar uma idéia, a esposa também se faz presente, levando o contratante – que também estava dentro do sonho, para garantir ser cumprida a missão – a um quarto nível de sonho; Cobb vai busca-los e decide renunciar seu despertar, escolhendo ficar ao lado da mulher naquele sonho (algo que me lembrou a renúncia do esposo, aceitando ficar ao lado da mulher no inferno em “Amor além da vida”); o filme finda com Cobb diante do contratante, havendo o “pião” rodando na cena: a certa altura ele parece perder velocidade e estabilidade, mas o filme finda antes que possamos constatar se ele cai ou não, de modo que não é – no meu entender – respondido se aquilo se trata de um sonho ou da realidade (minhas interpretações iniciais acerca de “Amnésia” eram justamente a de que propositalmente não há solução para o enigma, ainda que na última vez que o assisti, tal tese tenha sido abalada).
Para findar a presente resenha, um esclarecimento de algo que talvez não haja ficado suficientemente claro: afinal, o filme é bom ou não? Depende. Se comparado a maioria dos filmes lançados nos últimos tempos (inclusive europeus), mas sobretudo em relação aos hollywoodianos, é certamente um bom filme. Mas se levarmos em conta o potencial de Nolan, bem como as potencialidades que um enredo centrado em sonhos fornece (“Morangos silvestres” de Bergman e alguns filmes de Buñuel, além do já citado “A hora do pesadelo” constituem bons exemplos), não me parece exagero considerar “A origem” como um desperdício de talento e de dinheiro.
Alberto Bezerra de Abreu, 11/09/2010
Ps, fica aqui a sugestão de uma interessante resenha sobre o filme:
http://quadradodosloucos.blogspot.com/2010/08/critica-origem-christopher-nolan-2010.html
A revolução não será televisionada ou quando o esquerdismo bocó fura os olhos e tritura os cérebros dos naïves


*Pedro Sobral
No ano de 2001, os cineastas irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain viajaram à Venezuela para fazer turismo político e realizar um documentário sobre o já então controverso presidente Hugo Chávez, empossado dois anos antes.
Ao longo das filmagens, a dupla irlandesa se dá conta de que está em marcha um agudo processo para depor o presidente eleito pelas urnas e, sensatamente, muda o foco do documentário da figura burlesca de Hugo Chávez para a ruidosa oposição política e midiática no país caribenho. E voilà: nasce o ornitorrinco – animal estranho, monstrengo à Frankenstein – A revolução não será televisionada (The revolution will not be televised – Irlanda, 2003, 74 minutos).
Os mais incautos dirão que A revolução não será televisionada comprova a existência de uma burguesia local malvada, alinhada ao imperialismo norte-americano, preocupada com seus próprios interesses imediatos. Mas o ambiente político da Venezuela de antes e depois das filmagens é muito mais complexo do que o vulgar maniqueísmo e não comporta enquadramentos desse modelo. Para se ter uma idéia do desgaste do sistema de representação venezuelano em 1998, basta dizer que a principal adversária de Hugo Chávez na disputa majoritária daquele ano era Irene Sáez, ex-Miss Universo, que concorreu com o arfante apoio político da Acción Democrática – agremiação que se revezava no poder com seu congênere Copei (partido democrata-cristão) havia exatamente quarenta anos.
Imediatamente após a posse, em 1999, Chávez convoca uma assembléia constituinte que dissolve a Câmara Alta do país (e sem senadores fica mais fácil governar com parca oposição tendo em vista que a Câmara Alta não é – necessariamente – governista como sói ser a Câmara Baixa), muda o nome da nação de República Federativa da Venezuela para República Bolivariana da Venezuela e revoga alguns dispositivos constitucionais acerca da extração de petróleo pela estatal Pdvsa, grande fomentador de divisas para os venezuelanos, além da lei de posse de terras.
No que toca ao adjetivo bolivariano, devo abrir um parêntese: estive na Venezuela em 2007 e me impressionou como tudo no país recebe – agora com Chávez – o epíteto bolivariano: rua bolivariana, avenida bolivariana, universidade bolivariana, político bolivariano e assim sucessivamente ad nauseam, ad aeternum e ad infernum. Seria o pesadelo extremo daquela personagem do desenho animado Pernalonga (um baixinho, com longos bigodes cujo nome se esvaiu de minha memória). Em um episódio, o coelho Pernalonga deixa essa personagem de baixa estatura enlouquecida e paranóica. E, na sua mente enferma, todas as pessoas que vê na rua – policiais, mulheres, bebês... – são coelhos e sempre lhe contestam com a indefectível pergunta: “O quê é que há, chefe?” Foi mais ou menos isso que senti na República Bolivariana: “O quê é que há, bolivariano?” Demente.
Na panfletária película, os oposicionistas venezuelanos são pegos em seus piores momentos: numa associação patronal de bairro, um dos oradores pede que seus colegas vigiem suas empregadas domésticas, pois elas podem levar explosivos para detonar as casas burguesas; em outra cena, vemos imagens de algum canal privado do país e num desses programas matutinos de futilidades, quero dizer, variedades, a apresentadora se despede dizendo “Até quinta, de preferência sem Chávez!”; em um noticiário televisivo, em que o âncora anuncia que líderes da Acción Democrática solicitaram um exame de sanidade mental do presidente. Por outro lado, dos chavistas só são apresentados os momentos de música e poesia, e não se fotografa a realidade dos militantes rojos, rojitos1 (assim os chama Chávez): desocupados, violentos, cegos ao personalismo do caudilho etc.
Em fevereiro de 2002, o presidente do país resolve acomodar sua “cumpanheirada” na cobiçada estatal Pdvsa, em detrimento aos quadros técnicos que geriam a empresa até então. Foi a senha para a oposição convocar uma marcha em direção à sede da petrolífera. Neste ponto, A revolução não será televisionada assume o papel de imprensa chavista e manipula/distorce as informações a gosto. Os oposicionistas liderados pelo presidente da federação de comércio local (um equivalente seria a Fiesp no Brasil), Pedro Carmona, e o líder da principal central sindical do país, Carlos Ortega, decidem entre si desviar a passeata da sede da Pdvsa até o Palácio de Miraflores (palácio do governo) onde chavistas já estavam acomodados. Só poderia dar em morte – e deu. Ambos, situação e oposição, se acusam pelo assassinato de pelo menos 19 pessoas no dia 11 de abril de 2002. Para Bartley e O’ Briain, por supuesto, as mortes foram causadas pelos militantes oposicionistas. Os irlandeses conseguiram filmar dentro de Miraflores os bastidores do golpe, a prisão de Chávez, a assunção de Pedro Carmona como presidente venezuelano e o contragolpe a partir de membros da guarda leal ao recém-deposto presidente.
A revolução não será televisionada termina com Hugo Chávez reassumindo o posto de mandatário máximo do país caribenho. Nos anos que se seguiram ao golpe perpetrado pela dupla Carmona/Ortega, o governo Chávez transitou de uma semi-democracia pautada no mais castiço populismo latino-americano para um regime totalitário e ditatorial, pura e simplesmente.
O golpe de 02 é sempre utilizado pelo caudilho para justificar qualquer ação institucional de seu governo no âmbito de cercear a liberdade de imprensa – daí o fechamento da mais famosa rede de televisão local, a RCTV, em 2007, de 250 rádios com programação ligada aos poucos – e bravos – oposicionistas, em 2009, ademais das ameaças constantes ao canal Globovisión. Tal qual Il duce, o ditador italiano Benito Mussolini, Chávez fomentou grupos para-militares que devem obediência apenas ao ditador venezuelano (La Piedrita e Los Tupamaros – nome que imita o dos guerrilheiros/terroristas uruguaios dos anos 70, são exemplos), além das constantes agressões às instituições universitárias – as não-bolivarianas, que fique claro. Mas o mais aterrador é, sem dúvida, a Lista Tascón, de 2004. A dita lista enumera as pessoas que votaram a favor de um referendum revocatório do governo Chávez naquele ano. Aos desavisados que tiveram sua firma na lista, restou prosseguir a vida sem contar com a proteção e qualquer benefício do Estado: não podem mais tirar passaportes, os que eram funcionários públicos – de qualquer nível – foram exonerados, é negado crédito oficial aos empreendedores da Lista Tascón, entre outras arbitrariedades que tais.
A Venezuela caminha a passos céleres para uma guerra civil. As fraturas da sociedade local não estão mais calcadas nas diferenças entre pobres x ricos, mas entre chavistas e anti-chavistas. O país caribenho ficará rojo, rojito com o sangue dos embates que se aproximam. Por hora, já está vermelho de ódio.
1 Vermelho, vermelhinho é a referência de Hugo Chávez a seus militantes e seguidores, pois costumam usar camisa vermelha, símbolo da esquerda.
*Pedro Sobral é licenciado em história pela Universidade Católica de Pernambuco, bacharelando em ciências sociais pela UFPE, professor da rede pública e particular e cinéfilo nas horas vagas.
Morangos Silvestres: retrato psicanalítico da culpa numa velhice misantrópica




Existem obras que conseguem se tornar marcantes para nós. Acredito haver pelo menos dois motivos para tal: sua capacidade de nos fazer refletir, bem como de nos propiciar estreita identificação com algum personagem ou situação. Pessoalmente, enxergo ambas as características em “Morangos Silvestres” (Smultronstället, Suécia, 1957) de Ingmar Bergman. Tive recentemente a oportunidade de mais uma vez o reassistir, dessa vez em película na sessão de arte/ clássicos do São Luiz. Meu contato inicial com a obra se dera em 2006 e a paixão fora imediata e arrebatadora. Devo tê-lo assistido pelo menos uma vez mais, antes desta última, mas fazia pelo menos um ano que não voltava a ele. Assistindo-o no cinema consegui empreender uma visão mais crítica e afastada, percebendo alguns deslizes nítidos (que não só eram-me imperceptíveis, como impensáveis nas primeiras vezes que o contemplei), os quais, no entanto, pouco irão acrescentar a este texto.
Antes de adentrarmos no enredo, gostaria de recorrer a alguns dizeres de Bergman, extraídos de um livro com entrevistas do cineasta, intitulado “O cinema segundo Bergman” (Ed. Paz e Terra, 1977); como “Morangos Silvestres” é de meus filmes mais caros, sinto-me impelido a tentar empreender uma análise mais aprofundada dele, ainda que sem estender-me em demasia. Pois bem, no livro mencionado, Bergman esclarece que o mote da obra se baseia num sentimento de nostalgia em relação à infância (chega a citar Maria Wine, segundo quem “dormimos no sapato da nossa infância” [.p.109]); temos, portanto, um forte indício psicanalítico, ao menos da psicanálise freudiana. Ainda que o cineasta negue tal influência (ao menos no âmbito consciente da criação), tendo afirmado “O lado psicanalítico do filme não me parecia nem um pouco evidente. É uma etiqueta que outros colocaram nele, depois” (p. 115), sua posição me parece equivocada, pois os sonhos possuem papel fundamental em “Morangos silvestres”, sendo que pelo menos o primeiro – na minha interpretação – expressa um desejo (novamente Freud).
Para quem conhece Bergman minimamente, não é necessário mencionar que a obra traz aspectos bastante pessoais; no entanto, a mim parece que este tem alguns indícios auto-biográficos, sensação esta que é corroborada pela fala do próprio, ao afirmar: “este homem deveria ser um velho egocêntrico, cansado, que tinha se afastado completamente do mundo que o cercava, como eu mesmo o fiz” (p. 109); é curioso salientar que, apesar de não ser exatamente um velho quando realizou tal obra, em documentário recentemente produzido sobre sua vida, intitulado “A ilha de Bergman”, o cineasta aparece vivendo sozinho e isolado, na célebre e emblemática ilha de Faro, já bastante idoso. Tenho forte impressão que o médico Isak Borg e o cineasta Ingmar Bergman tiveram em comum o fato de darem ênfase em suas vidas profissionais em detrimento de suas relações pessoas/ afetivas. Passemos então ao filme propriamente dito.
“Morangos silvestres” narra a história de um velho misantropo, egocêntrico e egoísta, porém educado e refinado, que obviamente não cultiva relações pessoais prósperas, mas é um competente médico que viajará para receber uma homenagem acadêmica. Seu nome, como dito acima, é Isak Borg (nome que pode ser traduzido como “fortaleza de gelo”, numa escolha proposital de Bergman, que, aliás, afirmou só posteriormente ter percebido que o personagem tem suas mesmas iniciais); tal personagem é interpretado pelo veterano Victor Sjöströn, diretor de célebres filmes do cinema mudo sueco, como “A carruagem fantasma” (1921) e “Ingeborg Holm” (1913). Ao decidir ir não mais de avião, mas de carro, acaba tendo a companhia de sua nora Marianne (Ingrid Thulin) que estava momentaneamente separada de Evald (Gunnar Björnstrand), filho único e indesejado de Borg (que, aliás, fora traído pela esposa, a ponto de Evald dizer a Marianne que nem sabe se é mesmo filho daquele que chama de pai), em virtude de seu posicionamento pró-aborto dela (numa de suas falas, quando é surpreendido pela notícia da gravidez, Evald se posiciona veementemente contra ela, afirmando não ser este um mundo bom para se pôr nele um filho). Toda a história gira em torno da viagem de Borg, sendo intercalado por diálogos com alguns interlocutores (entre os quais Marianne é a mais significativa, sendo a única que o enfrenta – aliás, a altivez de Ingrid Thulin merece meu louvor pessoal, bem como o do próprio Bergman, que afirmou “Uma pessoa qualquer não poderia responder a uma personalidade tao impressionante quanto Victor Sjöström” (p. 124)), bem como por lembranças e sonhos do protagonista (as primeiras o transportam para sua juventude; os últimos apontam sua culpa e sua condição vegetativa).
Borg tem 78 anos (isso é mencionado), e já no início do filme, destaca sua dedicação à ciência e o caráter arisco de sua personalidade, ao se auto-intitular meticuloso e afirmar ter tornado sua vida, bem como a daqueles que o cercam, difícil. Ainda no início da obra, numa das cenas mais espetaculares de toda a história do cinema, somos transportados a um sonho do protagonista: Borg se encontra sozinho em uma cidade que aparenta estar completamente deserta; avista um grande relógio pendurado sobre uma casa, estando ele sem ponteiros; tira então um velho relógio (daqueles presos numa corrente, que não possuem pulseira) e constata também nele a inexistência de ponteiros (o que parece-me indicar estar ele parado no tempo e/ou sua relatividade/ ausência de sentido)/ a seguir, avista alguém de costas que, ao se virar, ostenta uma estranha fisionomia, com olhos e boca fechados, aparentemente colados (o que pode indicar incomunicabilidade); em seguida, tal pessoa se dissolve, restando somente suas roupas (mostrando talvez a dissolução das relações pessoais do protagonista: a única pessoa que encontra se dissolve). Vemos então uma carroça dobrar a esquina (uma possível alusão ao filme “A carruagem fantasma” de Sjöströn); uma de suas rodas se solta e rola em direção a Borg que se esquiva, assustado, sendo quase atingido por ela. Na seqüência, o veículo se engancha num poste e ao tentar desvenciliar-se do empecilho, derruba um caixão que cai entreaberto; ao avançar em direção a ele, Borg vê uma mão se erguendo e em seguida, constata perplexo ser ele mesmo o suposto cadáver (acredito haver aqui uma inversão de papeis: um Borg literalmente morto buscando a vida – ele puxa o braço do Borg que o fita de fora do caixão – e um Borg que apesar de vivo, não vive, mas sobrevive, vegeta, sendo, portanto, um morto-vivo). Não bastasse a soberba – e verossímil – caracterização de um sonho (contemplando de forma bastante convincente suas dimensões onírica e alegórica), tal cena é também um primor estético, constituindo simultaneamente a mais bela e realista apresentação de um sonho que já vi no cinema.
Como dito anteriormente, Marianne é a única que se atreve a confrontar Borg, contribuindo assim para abrir-lhe os olhos, ao afirmar que nele o egoísmo está disfarçado em civilidade e charme, bem como mencionando suas opiniões categóricas (ela cita um exemplo específico do qual não me recordo, mas que é certamente pejorativo em relação ao interlocutor do velho médico). Ao encontrar a jovem Sara (Bibi Anderson), acompanhada de dois jovens que disputam seu amor, Borg relembra sua juventude (coisa que também faz ao visitar a casa onde ele e sua família morava nesta época e onde vê sua amada – que apesar de ser sua namorada, será desposada por seu irmão – colher os morangos silvestres que dão nome ao filme); tais lembranças são mostradas em flashback e constituem, e minha opinião, um momento menos rigoroso do filme (atuações medianas, cenas não tão bem realizadas/costuradas quanto as que trazem os atores principais); cabe salientar um ponto destacado na resenha do filme presente no livro “1001 filmes para assistir antes de morrer”: ao intercalar tais sonhos e lembranças com conversas que vemos em tempo real, Bergman nos apresenta traços subjetivos e objetivos do protagonista, evitando a perspectiva unilateral do vislumbramento do mundo exclusivamente pelos olhos de Borg.
Outra passagem bastante significativa e esclarecedora é aquela onde Borg vai visitar sua mãe (não lembro bem sua idade, mas é na casa dos noventa, se não me engano), acompanhado por Marianne, que ao ver a mãe de seu sogro, percebe que a frieza e egoísmo de seu esposo fora-lhe transmitidas de geração em geração (aqui, pareceu-me que além do aspecto cultural, sugeriu-se, ou mesmo afirmou-se um componente hereditário no sentimento de frieza do qual discordo). Antes disso, passam num posto e o frentista (interpretado por Max von Sydow), após atender Borg, recusa seu pagamento, afirmando que não esqueceu o que ele fizera (não se menciona o que seja, mas deduz-se que seja uma assistência médica, provavelmente gratuita ou a preço simbólico), o que mostra que o protagonista não só é profissionalmente competente, mas bem quisto por pessoas que não tiveram convivência íntima com ele. Porém, o próprio não deixa de ter consciência de seus espinhos, como quando, ironizando a homenagem que irá receber, diz a si próprio que deveria receber o título de idiota honorário (de fato, parece que o desperdício de vida de alguém que é culto e inteligente é maior que o das pessoas comuns). Porém, sua compreensão acerca de o quão desagradável é para os outros é ambígua, pois aparenta não só surpresa, mas mesmo certa perplexidade ao perceber que a rejeição a ele é maior do que supunha (ela afirma que Evald o respeita, mas também o odeia). Ainda que não se não se desça aos aspectos mais viscerais do ressentimento (como faria em “Sonata de outono” – já resenhado neste blog http://miradourocinematografico.blogspot.com/search?updated-min=2010-04-01T00%3A00%3A00-03%3A00&updated-max=2010-05-01T00%3A00%3A00-03%3A00&max-results=1 – ou em “Saraband”), Bergman não deixa de apresentar (como sempre), relações familiares deveras conflituosas, mesmo que não vislumbremos as brigas/ discussões presentes nos dois filmes citados a pouco.
As relações de Borg não são difíceis apenas com seus familiares, mas também com sua governante: ambos vivem as turras, constituindo dois idosos um mais rabugento que o outro. Numa das cenas de humor (sarcástico) do filme, Borg, após começar a ter uma maior consciência de quão desagradável é para os demais, age gentilmente com a governante que, surpresa, pergunta se ele está doente. Outra das raras cenas nas quais a harmonia se sobrepõe aos embates/ tensões/ lamentações é aquela na qual Borg, Marianne e os jovens fazem uma refeição ao ar livre e há verdadeira comunhão durante o recitar de uma poesia (não lembro quem começa, se o próprio Borg ou um dos rapazes, mas lembro que este é complementado por Marianne). A tranqüilidade não é inalcançável afinal.
Outra cena antológica, a qual – penso eu – pode-se dizer que se destaca da obra como um todo é a retratação de mais um sonho de Borg, no qual ele é julgado, numa mistura de tribunal judicial e exame de medicina (novamente a ambigüidade dos sonhos); primeiramente, é-lhe pedido que examine uma paciente; mal começa a fazê-lo e constata – dizendo-o ao examinador – que a paciente esta morta, mas basta proferir tal diagnostico para que ela se ponha a gargalhar escarnecidamente. Pede-se em seguida que ele profira o mandamento máximo de um médico e ele se surpreende ao perceber que esqueceu; o veredicto do examinador é o de incompetência por parte do velho médico; diante de uma pequena bancada que nada fala, é ele também condenado por indiferença, egoísmo e falta de consideração, tendo como pena a solidão. Acredito ser nesta cena que lhe chamam de frio como gelo; por fim, Borg dar-se conta de que pensou saber tanta coisa, mas não sabe de nada (novamente a questão do acúmulo de conhecimentos refinados e cultura erudita que nada contribuíram para algo mais essencial que a erudição: a sabedoria do bem viver).
Pessoalmente, acredito que pela forma com que Bergman conduziu o filme, qualquer desfecho categórico seria insatisfatório, de modo que o final, ao conseguir não ser nem otimista nem pessimista de modo enfático, sem também cair na apatia, encerra-se com um desfecho convincente e equilibrado, nisso diferindo de “Viver” (de Akira Kurosawa), o qual, ao converter o desperdício de uma vida em redenção derradeira encerra-se de maneira otimista. Até onde recordo, tal palavra passa longe dos filmes mais viscerais de Bergman.
Alberto Bezerra de Abreu, setembro de 2010
Viver: desperdício convertido em redenção




Na noite da última sexta-feira não estive no local de costume, pois desisti de cursar a disciplina “sinuca II” este semestre. Assim, me encontrava em casa, lendo o primeiro volume do livro “O conceito de tecnologia”, do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, autor/ obra estes que constituem a base de minha dissertação de mestrado. Tal leitura era embalada pelo álbum “The crucible of man” do Iced Earth. Repentinamente tive um pensamento que não constituía propriamente uma novidade em minhas reflexões em termos de temática, mas que revelou uma nova feição em relação a um contexto específico. Explico: muito antes de sequer cogitar fazer filosofia já peguei-me refletindo sobre o sentido da vida, questão essa que parece afligir a muitos (apesar de que nos últimos tempos as pessoas em geral parecem cada vez mais preocupadas em imitar, em detrimento de pensarem com a própria cabeça). No entanto, dessa vez foi diferente, pois tive inicialmente o seguinte pensamento: se eu morresse agora (me refiro ao momento em que tive o pensamento) e pudesse fazer um balanço do valor de minha vida, a que conclusão eu chegaria? Devido a evidente conotação metafísica de tal reflexão, optei por reformula-la da seguinte maneira
(prescindindo da ideia de uma vida postmortem): se eu descobrisse agora ter pouco tempo de vida, que julgamento faria do que foi ela até então? Evidentemente esta reformulação dá ao indivíduo a possibilidade de ao menos fazer com que o epílogo de sua existência valha apena; tipo: “o que você faria se soubesse ter pouco tempo de vida?”. Parece haver duas respostas básicas para tal questão, as quais não são necessariamente – ao menos assim penso eu – auto-excludentes. São elas: procurar exceder-se e certos tipos de prazeres como bebida e sexo ou buscar outro tipo de prazer mais profundo e duradouro, aquele advindo da valorização e boa convivência com as pessoas. Afinal, já diz o ditado que só damos valor quando perdermos, de modo que muitas vezes amamos alguem mas nossas atitudes acabam não estando de acordo com tal sentimento.
Toda essa minha reflexão pessoal me remeteu a um filme que assisti recentemente: “Viver” (Ikiru, 1952) de Akira Kurosawa. Cheguei a tal filme através da leitura da sinopse do DVD “Morangos Silvestres” de Ingmar Bergman (ele de novo!), a qual afirmava serem estes dois filmes, juntamente com “Umberto D” (de Vittorio De Sica) obras fundamentais sobre a temática da velhice. Na realidade, ainda que o filme de Kurosawa traga um protagonista já um tanto velho, a temática trata menos da velhice que da morte eminente, devido a um câncer de estomago; a maneira como o personagem recebe o diagnostico (ou melhor, não recebe) é impagável. Humor na tragedia, como só os grandes sabem expressar. Ao contrário do glacial Isak Borg (protagonista de “Morangos silvestres”), o protagonista de “Viver” não é frio e arrogante, mas antes híbrido e apático. Perde-se na burocracia, mergulhado em toneladas de papeis, agindo de modo mecânico e desanimado. É deveras interessante o exemplo da jovem que abdica do emprego na repartição (ou algo do tipo, lembro-me apenas que se trata dum ambiente burocrático, destinado a aprovar obras públicas) por considerar tal ambiente como morto. Prefere então mudar de emprego, executando um trabalho pesado, dando-nos um contundente exemplo de alguém que não se deixa dominar pelo comodismo, ao contrário dos parasitas burocráticos que empestam o local. A caracterização que Kurosawa faz do sofrimento do povo, que, buscando melhoria em suas condições de vida ver-se num jogo de empurra-empurra onde ninguém assume as responsabilidade que lhe cabem expressa uma crítica social deveras verossímil e pertinente, talvez até mais ao ocidente que ao oriente.
Ao saber de sua condição terminal, o protagonista primeiramente se entrega a bebedeira e a putaria. Com o passar do tempo, porém, percebe que não será com tais prazeres superficiais que fará sua vida ter um sentido maior. Entrega-se então à missão de humanizar – um pouquinho que seja – o ambiente no qual trabalha, visando o bem-estar da população ao invés da comodidade dos funcionários que não se empenham em absolutamente nada. Seu empenho terá como fruto a construção de um parque/praça, no qual ele irá protagonizar uma das mais belas cenas da história do cinema (curtinha e em flashback). Acredito que as obras de Kurosawa tragam lições, e duas das presentes neste filme são a de que a vida tem o sentido que lhe damos e que ela é curta demais, não devendo, portanto, ser negligenciada. Afinal, como escreveu Clarice Lispector: “A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar duram uma eternidade. A vida não é de se brincar porque em um belo dia se morre”.
Alberto Bezerra de Abreu, 21/03/2010
Um dia muito especial: cotidiano + paixão + fascismo + subversão = obra-prima




O título do filme tem um duplo sentido: trata-se de um dia especial pelo desfile nazi-fascista que as pessoas em geral acompanham com entusiasmo, bem como um encontro insuspeito entre duas pessoas que sobrevivem apesar das dificuldades e ao se conhecerem, acrescentam algo importante na vida um do outro. Tudo se inicia quando o pássaro de estimação da família de Antonietta foge pela janela, pousando próximo da janela do apartamento em frente; a mulher percebe que há alguém lá e tenta gritar de seu apartamento, mas sem obter resultado, acaba tocando na campanhia do vizinho, que atende surpreso. Vemos então um homem maduro, gentil e educado, mas com um ar levemente melancólico; trata-se de Gabriele (Marcello Mastroianni), um intelectual (vemos em seu apartamento diversos livros – um dos quais ele empresta a Antonietta – e alguns quadros) recentemente demitido de seu emprego de locutor de radio devido as suas tendências consideradas subversivas durante o vigente regime fascista. Uma das grandes sacadas do filme é que a subversão de Gabriele não se refere – como pensei inicialmente – a simpatia ou mesmo adesão ao comunismo, tratando-se antes de um detalhe que prefiro não revelar, pois aqueles que não lerem a sinopse do filme podem ter a mesma surpresa que tive ao assisti-lo (a sinopse estraga a surpresa mas eu não farei isso aqui!).
Após uma estadia não tão breve assim na casa de Gabriele, Antonietta volta ao seu apartamento, mas ele, que mora só e estava bastante solitário (na realidade, ao tocar em sua campanhia ela evitou que ele cometesse suicídio) a visita em seguida; um elemento cômico (e simultaneamente realista) é a zeladora do prédio (uma figura desprezível: fofoqueira, preconceituosa – adepta ortodoxa do fascismo que, apesar de não ter ido ao desfile, acompanhou-o atentamente pelo rádio – e ostentando um incômodo buço que lhe confere certo ar de repugnância), que por duas vezes bate na porta de Antonietta, não tanto para censura-la por estar sozinha com um homem em seu apartamento, mesmo sendo casada e mãe de vários filhos, mas antes por estar na companhia de um subversivo. É deveras interessante o dilema na qual a dona-de-casa se vê: apesar de ter ficado bastante interessada naquele homem peculiar, ela é casada; além disso, mesmo que nada ocorra entre eles, ao receber sozinha um cavalheiro em sua casa ela está batendo de frente com uma convenção social; há ainda uma oposição entre Antonietta e Gabriele que só ficará mais explicita no decorrer do filme: ela é também entusiasta do fascismo e tem adoração por Mussolini a ponto de ter um álbum com fotos dele e ter feito uma imagem sua formada pela junção de botões de diversas cores. Ele, apesar de não estar profundamente envolvido com política é, de fato, um “subversivo”. Apesar de ser uma mulher forte, Antonietta não questiona o machismo do fascismo e Gabriele discorda dela, afirmando que uma mulher pode sim ser um gênio: cita como exemplo sua própria mãe num belo diálogo. Aliás, momentos belos são o que não faltam neste ótimo filme: numa cena de uma beleza singela e tocante, Antonietta inventa uma desculpa qualquer para sair da presença de Gabriele e vai até o banheiro para ajeitar seu cabelo, calçando em seguida sapatos de salto alto (já no apartamento dele ela mexia na meia para esconder um furo); ele percebe a mudança em seu cabelo e acredito que este pequeno detalhe revele muito da condição subversiva dele, mas isto só me ficou claro posteriormente.
O beijo entre os dois no pátio onde são estendidas roupas é poética e peculiar, além de muito bonita esteticamente: com o sol atrás deles, vemos apenas os contornos de seus corpos, próximos um do outro. No entanto, não lhes seria possível terem um romance tradicional e em outra passagem marcante, Gabriele esbraveja contra as três funções que deveriam ser exercidas por um verdadeiro homem fascista: as de marido, pai, soldado, afirmando que não poderia ser nenhuma delas. O filme se passa em um único dia (o tal dia especial do título) e seu desfecho não podia ser mais realista, não fazendo concessões ao romantismo. Se saí do cinema encantado naquela noite de sexta-feira, neste momento, ao escrever este texto, percebo que meu apreço pelo filme tornou-se ainda maior. Percebo nele possíveis ecos do neo-realismo italiano, mas com pitadas de romance, além de uma sofisticação que inexistia naquele estilo. Não me parece exagero atribuir a “Um dia muito especial” a alcunha de obra-prima.
Alberto Bezerra de Abreu, 31/07/2010
Mary e Max: uma improvável amizade como alento de dois solitários





O início de “Mary e Max” é soberbo: mostra-se algumas casas de uma cidade australiana na qual reside a pequena Mary Daisy Dinkle, então com 8 anos de idade. O destaque vai para os pequenos detalhes, cuidadosamente pensados e exibidos (bola de futebol americano no telhado, patim esquecido no jardim, cueca no varal), bem como para a excelência da animação, a qual se refere não só aos objetos, mas também as personagens. Quando o filme começa a expor seu enredo, passamos a conhecer a degradada família de Mary: seu pai trabalhava pondo os cordões nos saquinhos de chá e preferia passar seu tempo livre na companhia de animais empalhados do que com sua filha; a mãe, por sua vez, é o perfeito arquétipo da “baranga”, fumando constantemente e entupindo-se de chá de xerém, exibindo sempre “bobs” na cabeça e um batom de um vermelho intenso nos lábios e praticando furto de objetos que esconde dentro do vestido que usa. Como a garota não possui amigos, sua maior diversão é comer doce de leite assistindo a seu desenho favorito na companhia de seu galo (!) de estimação.
Certo dia, folheando uma lista telefônica dos EUA e surpreendendo-se com a extravagância dos sobrenomes ali expostos, a garota é obrigada a sair da loja as pressas, pois o furto da sua mãe fora descoberto e esta puxa sua cria o mais rápido possível (não antes que ela possa rasgar um pequeno pedaço da lista telefônica com o endereço de um certo Max Jerry Horowitz, de 44 anos).
Não sabendo bem o que escrever, a garota resolve perguntar de onde vêm os bebês nos EUA (na Austrália eles eram encontrados dentro de canecos de cerveja, como lhe dissera um adulto...); em delicioso e ingênuo diletantismo criativo infantil a garota cogita que nos EUA os bebês sejam encontrados dentro de latas de Coca-Cola, mas logo descarta a idéia, afirmando para si mesma que eles não passariam pela pequena abertura das latas. A tal questionamento, soma informações pessoais suas, afinal, escrevia para um completo estranho. Anexa ainda uma barra de chocolate, sem imaginar que seu futuro amigo é um grande apreciador de tal alimento (ele inventara o “cachorro-quente de chocolate”).
Saímos então de uma ensolarada, mas não exatamente bela cidade australiana e vemos uma Nova York cinzenta, sombria e hostil. Max reside num velho apartamento, tendo companhia diversos animais bizarros, como um peixinho de aquário (no decorrer do filme ele morre, sendo substituído por outro e este por outro, cada um deles tendo o mesmo nome, acrescentado-se a ele um número a mais), um papagaio e um gato caolho. Sua forma de lidar com situações novas (que para ele são sinônimos de problema) é peculiar e cômica, se vista de fora: subir num tamborete e tremer de pavor. Suas consultas a um psicanalista, participação num grupo de ajuda de comedores compulsivos e a existência de um amigo imaginário só reforçam o estereotipo (cativante, diga-se de passagem) de uma alma extravagante a atormentada.
Nasce então uma improvável amizade entre os dois solitários, alimentada por cartas através das quais conhecemos em detalhes a vida de cada um deles. Até que algo põe fim a tal amizade, que será retomada em termos não exatamente otimistas no final.
A caracterização dos personagens é excelente, não só em termos de personalidade, mas de expressividade de suas feições e gestos (superiores a interpretações de muitos atores profissionais); em que pese o humor de passagens como a existência de um caderninho no qual Max desenha expressões faciais com as legendas “zangado” e “alegre” (para assim tentar contornar sua incapacidade de “ler” a expressão facial das pessoas) e o vizinho de Mary que perdera as duas pernas na guerra (devoradas por piranhas), tendo adquirido fobia a sair de casa (toda vez que tentava faze-lo era vítima de algo que realmente punha em risco sua vida), tais momentos apenas amenizam, mas não suprimem o tom fortemente melancólico da obra. Mesmo constituindo-se numa bela ode à amizade e não optando por um final propriamente pessimista, o filme não aposta num ingênuo (e pouco convincente) desfecho no qual todos (ou ao menos os bons, se é que isso existe) viveram felizes para sempre.
Alberto Bezerra de Abreu, 24/07/2010
Chico Xavier – o filme: sobriedade e sentimentalismo em doses adequadas



Pela primeira vez em 2010 aderi ao circuito cinematográfico comercial e fui ao “xopis” Boa Vista assistir a “Chico Xavier” com a pior das expectativas possíveis, em virtude de se tratar de um filme da Globo Filmes. No entanto, surpreendi-me positivamente (a expectativa – boa, evidentemente – constitui a matéria-prima fundamental da decepção, como já ensinara Schopenhauer); apesar de acessível e clichê, a obra não se perde em infinidade de lugares-comuns, não apela ao sentimentalismo fácil (certamente há cenas que talvez arranquem lágrimas dos mais sensíveis, mas não me pareceu que sejam propriamente apelativas) e, acima de tudo, o filme não é tão “novelinha” quanto outros realizados pela mesma produtora. O fato de os personagens principais serem todos interpretados por atores “globais” certamente incomoda um pouco aqueles que como eu buscam se afastar de um cinema eminentemente comercial, mas, em que pesem algumas atuações um tanto caricatas (Giulia Gam e Cássio Gabus Mendes – este último num papel que se revela muito mais breve do que indicava o trailer), os “globais” dão conta do recado a contento daqueles um pouco mais exigentes. Nelson Xavier interpreta um Chico maduro de maneira sóbria, sem excessos que talvez surgissem na interpretação de algum outro ator; Pedro Paulo Rangel é outro ponto alto em termos de atuação, com seu humor característico. No entanto, a grande atuação de “Chico Xavier” fica por conta de Tony Ramos, mas não na obra como um todo e sim especificamente em duas cenas finais: aquela onde lhe é mostrada a carta de seu filho, psicografada por Chico durante o programa de televisão dirigido pelo personagem de Ramos; a forma como este “engasga” (dá uma parada naquilo que estava dizendo, em virtude de ter sido tomado pela emoção) é soberba; a outra cena é a do julgamento, onde afirma ser ateu, mas pede a absolvição daquele que, involuntariamente tirou a vida de seu filho.
O filme investe numa dupla narrativa: Chico velho e Chico jovem (criança e adulto) retratados de forma alternada, sem, contudo, acarretar nenhum tipo de complexidade na narração (trata-se de uma obra acessível, destinada ao chamado “grande público”). Não deixa de haver momentos que me pareceram pretensão artística: o primeiro deles se dá justamente na cena inicial, na qual vemos gotas de um liquido sendo pingadas; a câmera está devera próxima do objeto que pinga as gotas e só conseguimos distinguir que trata-se de Chico pingando colírio em seus olhos – já estando velho – a medida que a câmera vai se afastando (remeteu-me a cena inicial de “Clube da Luta”); já a outra cena com supostas pretensões artísticas ficarei devendo, pois não lembro qual seja (assisti ao filme apenas uma vez antes de resenha-lo). Como não poderia deixar de ser, há clichês, sendo dois deles mais nítidos: quando o personagem de Ramos pede a Chico que psicografe ao vivo durante o programa de televisão é fácil deduzir que a carta será do filho daquele. E o final nada tem de abrupto: sabemos bem “o filme está acabando” a medida que a película de aproxima de seu final.
Um aspecto insuspeito a ser destacado é a ironia de Chico mostrada no filme; esta não aparece nele enquanto criança ou jovem, mas aparece no Chico maduro, sobretudo na cena da entrevista. Isto remete a outra coisa, a qual, curiosamente, foi o que me fez ter vontade de escrever sobre o filme: durante seus créditos finais são mostrados trechos da entrevista da participação de Chico no programa de televisão (o Chico real) e podemos constatar que algumas das falas do personagem no filme durante a entrevista são reproduções exatas daquilo que Chico falara na vida real (como sua fala não condenatória do sexo e a reza do pai nosso por ele iniciada), ao passo que outra de suas falas foi adaptada numa cena que mostrava o acontecimento em “tempo real” (trata-se do episodio em que, durante uma turbulência no avião, Chico teria entrado em estado de pânico, tanto quanto os demais passageiros, sendo censurado por seu espírito guia, Emanuel, a quem, no entanto, ele não dera ouvidos). Este fato é demasiado importante, pois expressa que em pelo menos parte do filme procurou-se ser o mais fiel possível a realidade histórica (aqui poderíamos entrar na espinhosa questão de até onde se pode admitir a licença poética quando se trata de adaptar uma obra baseada em fatos reais – pessoalmente acho bastante problemático e arriscado misturar realidade e ficção, sendo partidário de documentários no que concerne a retratar fatos/ personagens históricos, mas não sou ortodoxo quanto a isso). Cabe salientar que justamente nestes trechos de falas do Chico real nos créditos finais podemos notar ainda mais que no personagem cinematográfico traços de ironia, ainda que esta nunca descambe para o sarcasmo, sendo sempre polida e indicando mais inteligência do que puro escárnio.
Quero passar agora a uma discussão mais pessoal da obra: ela opta por focar na vida e obras do personagem, não se atendo muito a explicitar quais seriam as bases do espiritismo (exceto a questão da caridade e da tolerância – ao contrário de um filme como “Amor além da vida” que, até onde me lembro, se aproxima muito, seja da doutrina espírita, seja da formulação filosófica na qual ela supostamente bebe, mostrando inclusive o além desta vida a qual estamos acostumados). E apesar de não adentrar nestas formulações mais específicas do espiritismo (isto se encontrará nos livros para quem se interessar e pasmem! li a anos atrás um livro espírita chamado “Nosso lar”, o qual me pareceu deveras esclarecedor acerca da perspectiva por eles defendida), o filme aponta para dois aspectos éticos que me deram muito o que pensar: 1) a postura do não aceitar retribuição do favor para si mesmo, mas de pedir para que esta seja repassada para outrem (me remeteu ao filme “Corrente do bem”); 2) o imperativo de quebrar os limites que nós mesmos nos impomos: reclamarmos menos e agirmos mais, como quando vemos escorrer sangue do olho de Chico, em virtude do excesso de trabalho no qual ele se engajou (chegando a cuidar mais dos outros que de si mesmo, a ponto de seus familiares lhe darem o ultimato: “ou você sai dessa casa ou saímos nós”, tendo em vista que durante todo o dia o médium recebia dezenas, quiçá centenas de pessoas em sua residência – que não era só sua).
Em suma, apesar do predomínio de atores globais nos papeis principais o filme não se torna “novelesco” demais nem piegas. No entanto, passa longe de ser um filme artístico, um documentário aprofundado ou um primor do entretenimento que mereça ser indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro (vencer tal categoria é uma velha meta tupiniquim nunca alcançada...). Parece-me se tratar de um filme de entretenimento com doses de profundidade no âmbito ético. E o que é mais importante, no meu ponto de vista: trata-se de um filme que faz pensar. Ou pelo menos se propõe a isso.
Alberto Bezerra de Abreu 20/04/2010
About Me

- Miradouro Cinematográfico
- Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)