sexta-feira, 16 de novembro de 2012
Exibição de “O Leopardo” na V janela internacional de cinema do Recife: teste de paciência
23:58 |
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Uma das imagens de divulgação do festival
Fila do lado de fora do cinema: na sessão de "Psicose", ela deu a volta completa no prédio; na sessão de "O Leopardo", ficou "apenas" em frente e numa das laterais do cinema
A atriz Cláudia Cardinale, em uma das cenas de "O Leopardo"
Os atores Alain Delon e Cláudia Cardinale em uma das cenas de "O Leopardo"
Por Erick Silva
A exibição de "O Leopardo", na Janela Internacional de Cinema, no Recife esta noite, foi uma enorme decepção em (quase) todos os aspectos.
Primeiro, a desorganização nas filas do cinema São Luíz, o que já virou praxe para o Festival (vide sua edição ano passado). Não obstante, o filme começou a ser exibido com mais de meia hora de atraso. Isso, sem contar a própria programação da edição deste ano (muito fraca e sem atrativos extras). Pra completar, na metade de "O Leopardo", a legenda em português "sumiu", deixando apenas a de inglês! Quando eu fui reclamar, foi-me dito que se tratava de uma falha no computador, e que a legenda seria reiniciada, mas o filme, não! Resultado: minha namorada Gorette Kaiowá Silva e eu exigimos nosso dinheiro dos ingressos de volta depois de cinco minutos SEM LEGENDA!
Resolvemos esta questão, pois nos prometeram a devolução amanhã, com o caixa do cinema aberto. Porém o que acabou nos incomodando de verdade foi a PASSIVIDADE latente da platéia, que mesmo com boa parte não entendendo as legendas em inglês continuaram inertes em seu canto. Ora, todos fomos para assistir a um filme legendado TAMBÉM em português; não tínhamos a obrigação de saber da língua inglesa! Mas, é aquela estória: pega mal se manifestar sobre algo assim, já que deve ser vergonhoso pra alguns não saber inglês! Sabem como é: é preciso manter o STATUS em alta!
"O Leopardo" fala justamente de uma aristocracia em plena decadência, que não quer perder suas mordomias. Assim como a platéia do São Luíz hoje, que se acomodou, teve medo dese manifestar, acovardou-se de reclamar! Foi um micro-retrato dessa nossa sociedade, que, com medo de perder o pouco que tem não faz nada (mesmo diante das maiores injustiças).
Detalhe: são os mesmos pseudo-intelectuais que expressaram sua selvageria na sessão de Febre do Rato, na edição da Janela ano passado, e que pagarão R$ 99,90 para ter o DVD desse filme em casa (só por exibicionismo). Da mesma forma que chegarão em casa hoje e se gabarão de terem assistido um "clássico do cinema"!
Como meus amigos Angelus Novus e Wilker Medeiros estavam lá, gostaria de saber também a opinião deles a respeito desse fato.
Da minha parte, parabéns à Janela Internacional de Cinema e à platéia, em geral, do São Luíz hoje! Vocês fornecerem dados suficientes para um promissor estudo sociológico!!!
"É ESSA A JUVENTUDE QUE QUER MUDAR O BRASIL? VOCÊS NÃO ESTÃO ENTENDENDO NADA! NADA!" (Caetano Veloso).
Erick “Kaiwoá” Silva, 14/11/2012
terça-feira, 14 de agosto de 2012
A estética da loucura e do cagaço em Superoutro (Edgar Navarro)
01:06 |
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Por Pedro Sobral*
No ano de 2003, a Fundação Joaquim Nabuco (no Recife) exibiu três curtas do realizador baiano Edgar Navarro: Lin e Katazan, O Rei do Cagaço e Superoutro. Lembro-me do chamamento impresso no folder da programação: “Você não verá nada igual no cinema este ano”. Deveras. Na primeira tomada de O Rei do Cagaço, por exemplo, nos deparamos com a câmera focalizada no tão vilipendiado e menosprezado ânus – e em plena atividade de ejeção. Apesar do alerta impresso, parte da platéia evacuou (atente à polissemia do verbo) a sala de projeção voluntariamente, como não poderia deixar de ser.
O cinema é prodigioso em mostrar o ato da ingestão dos alimentos como um momento de confraternização, de crescimento e felicidade. Um grande exemplo seria A Festa de Babette – sem esquecer, é claro, um seu antípoda, o clássico italiano La Grande Bouffe, de Marco Ferreri. Por outro lado, a ejeção sempre compôs o invólucro das baixezas humanas, o perverso (etimologicamente do latim per, a preposição “por” e versum, “trás”). Mas, tudo que entra tem que sair. E ninguém filmou a segunda parte deste simples adágio com tanta propriedade quanto Edgar Navarro.
Em Superoutro (1989, 47 minutos) vê-se um esquizofrênico morador de rua (Bertrand Duarte, irretorquível) perambulando pelas vielas e pontos turísticos de Salvador. Uma noite, depois de um acesso de loucura, invade um condomínio de classe média na capital baiana bradando: “Acorda, humanidade!”, como se pedisse o despertar da consciência dos mais validos em direção aos miseráveis. A partir de então, as vozes não mais param na cabeça do Esquizofrênico e se processam uma série de episódios cômicos, trágicos e escatológicos.
Mereceria um artigo à parte a fixação de Edgar Navarro pelo ânus e a ejeção (Freud explicaria isso através da fase anal da criança: ela tenta controlar os pais através do jogo de retenção/expulsão das fezes): é o desbunde – literalmente – elevado à derradeira potência. Da mesma forma que na abertura de O Rei do Cagaço, temos em Superoutro a visão privilegiada do esfíncter anal de Bertrand Duarte em trabalho pleno e absoluto. Recordo-me da frase expelida por um ex-professor, já falecido, quando cursava pós-graduação (não lembro o contexto do dito): “O cu é bom demais. Sem o cu a gente explode”.
O escatológico nas artes nunca foi novidade, vide as obras do italiano Piero Manzoni que, em 1961, defecou em várias latas colocando a etiqueta Merde d’artista, vendendo-as a preço de ouro para diversos museus mundo afora; algumas cenas de Philippe Noiret (em especial num momento de prisão de ventre e flatos) no supracitado La Grande Bouffe; o roqueiro punk GG Allin que durante suas performances costumava defecar no palco, jogava uma parte na platéia e comia também um bom bocado justificando-se que “não gostaria de ver seus dejetos indo por qualquer canto” (Ah, bom – faz sentido! Pensei que fosse loucura!); muito antes, na literatura de François Rabelais (1483–1553), o escatológico se fazia presente. No Gargântua, Rabelais descreve as ferramentas do jovem gigante para limpar o ânus:
O cachecol de veludo de uma dama, um lenço de pescoço, um tapa-orelhas de cetim, a touca de uma pajem, um “gato de março” (que lhe arranhou o traseiro com as patas), as luvas de sua mãe perfumadas de benzina, a sálvia, o funcho, o aneto, folhas de couve, alface, espinafre (série comestível), as rosas, a urtiga (sic), as cobertas, as cortinas, os guardanapos, o feno, a palha, a lã, o travesseiro, os sapatos, um alforje, um cesto, um chapéu. O melhor limpador de cu é um gansinho com a penugem macia: (...) tanto pela maciez dos pelos quanto pelo calor que se transmite pelo intestino reto e pelas outras entranhas, chegando até a região do coração e do cérebro.
Está na escatologia uma das melhores cenas de Superoutro: quando o Esquizofrênico defeca sobre um jornal, na beira-mar de Salvador (e aqui se pode abrir o parêntese da relação da loucura, normalmente suja e impura, com a água – límpida, cristalina e terapêutica, tal como pregava o psiquiatra francês Leuret, no século XIX, no tratamento de choque de seus pacientes com fortes duchas) e mela com seus resíduos a camisa de uma versão baiana de playboy – o rapaz incauto está parado no semáforo, dentro de um automóvel Santana Quantum, engravatado e escutando o impagável hit oitentista Kátia Flávia, de Fausto Fawcett.
Se os dejetos sólidos têm o poder de causar o riso, de desarmar a sisudez, libertar um da tirania e promover o desbunde total, o Esquizofrênico, nosso anti-herói de Superoutro, se mostra demasiado humano, e não um ser de outra natureza: como todos nós ele come, bebe, evacua e peida. Só que tudo isso numa escala enlouquecida e miserável.
*Pedro Sobral é licenciado em história pela Universidade Católica de Pernambuco, bacharelando em ciências sociais pela UFPE, professor da rede pública e particular e cinéfilo nas horas vagas.
segunda-feira, 6 de agosto de 2012
Mostra Beckett do Cineclube Dissenso: um “acontecimento”?
21:09 |
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Esboço para teatro I (Rough for theatre I)
Encenação (Play)
Entre os dias 25 e 28 de julho do presente ano o Cineclube Dissenso (atualmente sediado no prédio do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife) exibiu uma mostra de filmes (curtas e longas metragem) baseados na(s) obra(s) do escritor/dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Embora (ainda) nada tenha lido do autor, a exibição de tais filmes se deu em sincronicidade com o brotar de meu interesse por ele; já na edição de 2010 do festival pernambucano de artes cênicas Janeiro de Grandes Espetáculos, quando Antônio Abujamra encenou a peça (?) “Começar a terminar” (texto do próprio, inspirado em obras de Beckett), comecei a me interessar pela obra do irlandês, alimentado pela ótima cobertura dada pelos jornais locais (embora tenha perdido esta encenação por ter sido ela realizada no teatro Barreto Junior, na distante – para mim – zona sul da cidade). Acabei, assim, deixando Beckett de lado. Entretanto, em meados do ano seguinte, a figura do autor de “Esperando Godot” ressurgiu (novamente de maneira indireta) para mim, através de insistentes menções a uma célebre frase dele, redigidas pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek; em “Primeiro como tragédia, depois como farsa” (Boitempo, 2011), referindo-se à perseverança de Lenin, afirma Zizek: “Esse é Lenin em sua melhor forma beckettiana, fazendo eco à frase de Pioravante marche: ‘Tente de novo. Erre de novo. Erre melhor’” (ZIZEK, 2011, p. 79). Na mesma obra, o esloveno volta a utilizar a frase do irlandês, desta vez na página 108. Também no livro “Em defesa das causas perdidas” (Boitempo, 2011), Zizek utiliza esta máxima beckettiana, referindo-se desta vez a Kant e a Mao Tse-Tung (p. 215).
Ressurgido assim meu interesse por Beckett, comecei a procurar uma tradução portuguesa da tal “Pioravante marche”, e me deparei com sua suposta inexistência (ao que me consta, há pelo menos uma tradução em português de Portugal, mas aparentemente de difícil localização). Pesquisando um pouco mais, eis a grande descoberta: o tal texto acabara de ser traduzido em edição nacional (sob o título “Pra frente o pior”); trata-se do livro “Companhia e outros textos”, cuja tradução para o português brasileiro foi realizada por Ana Helena Souza, sendo o livro lançado em 2012 pela Editora Globo. Bastou meu interesse por Beckett ressurgir (de maneira direcionada, ao contrário do que ocorrera em 2010) para que o texto em questão fosse lançado em português (e por um preço acessível!) e, na seqüência, o supramencionado cineclube levasse a frente à realização da mostra sobre a qual este texto se debruça. Para que pensou em coincidência, repito o termo supramencionado: sincronicidade.
Adentrando (enfim) aos filmes exibidos na mostra, não os comentarei individualmente, pois isto seria bastante desgastante para mim e para os leitores deste blog (sim, eles existem, embora não costumem comentar...). Sugiro que, caso alguém tenha algo a dizer especificamente sobre algum dos filmes exibidos, que empreendamos um debate na parte dos comentários. Pois bem, a primeira coisa a se falar da obra de Beckett é que ela exige muito do leitor/espectador, não só por sua profundidade, mas também por sua forma; sem medo de ser polêmico, afirmo com todas as letras: não raro sua obra é maçante. Entretanto, de modo algum isto implica necessariamente ser ela desinteressante. Voltando brevemente ao supracitado livro “Companhia e outros textos” (uma coletânea, como o título deixa claro), adquiri-a prontamente, porém, renunciei a sua leitura imediata ao ler o prefácio de Fábio de Souza Andrade, pois este deixou claro que os textos exigiram de mim mais do que eu poderia dar no momento (não por falta de interesse, mas devido a outras prioridades). Dessa forma, o contato com a obra beckettiana adaptada para o cinema veio a calhar, pois me tomou “apenas” algumas horas, ao passo que a leitura dos “contos” me levaria dias, quiçá meses (o livro tem menos de 100 páginas, se desconsiderarmos o prefácio que não é do próprio Beckett, mas leio “degustativamente”). Uma característica comum de todos os filmes exibidos (ao menos de todos que pude assistir, pois perdi a exibição do último dia, justamente o de “Esperando Godot”) consiste no fato de a encenação se restringir a um único espaço: uma rua, um cômodo de uma casa, o espaço interno de um teatro, etc. Além disso, em alguns filmes a verborragia (não uso o termo em sentido pejorativo) tornava inevitável e perda de algumas palavras por parte dos espectadores, mesmo num filme como “Encenação”, no qual todo o texto é repetido integralmente. Aliás, falando em texto, cabe aqui uma informação de grande relevância: de acordo com os organizadores do evento, todas as adaptações primaram pela fidelidade aos textos originais, conservando-os integralmente nas encenações (também se mencionou o excesso de cuidado que Beckett tinha com seus escritos, não deixando que fossem encenados – seja no cinema, seja no teatro – por qualquer um).
Outro aspecto pelo qual o cineclube merece destaque positivo consiste no fato de não se limitarem a contextualizar os filmes antes de sua exibição, mas empreenderem também debates ao final; embora seja mais de ouvir do que de falar quando me encontro entre estranhos, foi-me impossível não me pronunciar sobre a (muito) grande semelhança existente entre o supracitado “Encenação” e a peça “Entre quatro paredes” de Jean-Paul Sartre: em ambos, vêem-se três pessoas no inferno (um homem, duas mulheres); em ambos há algo de triângulo amoroso, embora de maneira ambígua; em ambos há o eterno retorno (repetição contínua do castigo, remetendo ao mito de Sísifo – aliás, título de uma obra de Albert Camus, contemporâneo de Sartre e Beckett –, ao mito de Prometeu, entre outros mitos gregos). Saliento desde já ter sido este um de meus filmes favoritos. Nele o elemento estético alcança nada menos que a perfeição. As atuações também são soberbas.
Nada há de coincidência no fato de outro de meus favoritos na mostra –“Esboço para teatro I” –, ser, igualmente, de um primor estético invulgar. Neste filme (que se passa numa esquina em ruínas, cenário típico pós-guerra), vemos o diálogo entre o mendigo cego e um cadeirante (ambos idosos); este último propõe ao primeiro: “você me empurra e eu lhe guio”. A colaboração entre eles não se converte em realidade e o filme se encerra com direcionando seu “cajado” em direção ao cadeirante com intuito de agredi-lo violentamente, após ter sido humilhado durante quase toda a conversa; a mensagem me parece de uma clareza desoladora: embora pudesse complementar-se “perfeitamente” no caso de colaborarem, ambos os homens sequer conseguem conversar civilizadamente. A degradação humana constitui um tema recorrente em Beckett, embora algumas vezes sendo retratada com ironia, outras vezes, de forma bastante “crua”.
Dentre os longas, minha preferência elegeu “Fim de partida”; embora haja nele algo de semelhante ao filme acima citado, haja vista que um dos protagonistas não pode ficar de pé (além de aleijado é cego, possuindo assim as deficiências de ambos os personagens de “Esboço para teatro I”), ao passo que o outro (seu “criado”/empregado), sendo manco, não pode sentar-se, o que mais me chamou atenção no filme foi o fato de ter sido ele o único dos longas que assisti que não me causou nenhuma espécie de enfado (os outros longas que assisti foram: “Dias felizes” e “A última gravação”, não sendo demais repetir que perdi a exibição de “Esperando Godot”). Cabe salientar que não considero o enfado despertado por um filme como algo necessariamente ruim; pelo contrário, posso considerá-lo com um diferencial positivo, desde que ele seja proposital e transcenda a intenção de ser maçante sem mais. No entanto, não pude deixar de me espantar com a maneira fluída de contemplar um filme complexo, restrito a um único ambiente, em contraste com os dois longas que havia assistido nos dias anteriores (será um diferencial dele, ou estaria eu me acostumando em demasia com as idiossincrasias beckettianas?). Outra coisa, embora a apresentação de personagens fragmentados (em muitos filmes foram exibidas apenas cabeças dos personagens), penso que em nenhum deles este expediente alcançou a dimensão do bizarro tão bem quanto em “Fim de partida”: nele, os pais do protagonista patrão não possuíam corpo da cintura para baixo (em virtude de um acidente), e viviam, cada qual e uma lata de lixo. Embora a relação entre os protagonistas (patrão-empregado) fosse pesada (nitidamente sado-masoquista no sentido não sexual-genital do termo), ela me pareceu essencialmente verossímil, contrariando a dimensão do absurdo que tornou Beckett célebre; contudo, o aparecimento dos pais nas suas respectivas latas de lixo (!) a certa altura do filme acrescentou ao filme uma dimensão de bizarrice (absurdidade) inesperada e só não desconcertante por tratar-se de Beckett.
Em suma, a experiência foi deveras enriquecedora, na reflexão, no enfado, no deleite estético, no estranhamento (tudo isso propiciado pelas próprias obras), bem como pelas informações (fornecidas pelo pessoal do cineclube) e pelos debates (promovido pelos organizadores do cineclube, mas com participação ativa de alguns dos espectadores).
Ps. 1: o próprio pessoal do cineclube divulgou um blog no qual pode-se assistir a todos os filmes exibidos na mostra:http://beckettemfilme.blogspot.com.br/
Ps. 2: o termo “acontecimento” utilizado no título deste texto remete a uma noção de Alain Badiou (o qual também conheci através de Zizek).
Alberto Bezerra de Abreu; 06/08/2012 (redigido ao som de Thelonious Monk – “Monk’s blues”, Dizzy Gillespie – “Dizzy’s party” e John Coltrane – “Coltrane”).
Dedico este texto a Marcel Koury e Gorette Silva (ambos – cada um a seu modo – apreciadores de Beckett) e a Alessandra Alencar, responsável pela inclusão do conceito junguiano de “sincronicidade” neste texto (embora ela não saiba que o estou redigindo =)
segunda-feira, 11 de junho de 2012
Cine PE 2012, terça-feira: uma noite introspectiva
20:53 |
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"Dia estrelado"
"A fábrica"
"Sonhando passarinhos"
"Na quadrada das águas perdidas"
"Estradeiros"
Ao contrário do que ocorrera no sábado, a noite de terça (feriado) do Cine PE 2012 teve um público notoriamente escasso. Não só por isso, mas também pela ausência de filmes “chamativos” – digamos assim –, como “À beira do caminho” e o documentário de Pedro Bial e Heitor D’ Alincourt sobre Jorge Mautner, o clima da noite pareceu-me estranhamente intimista, haja vista a recorrente alcunha segundo a qual o Cine PE constitui “o Maracanã dos festivais nacionais de cinema”.
Reforçando (para mim) o caráter intimista da noite, descobri que a jovem diretora do primeiro curta-metragem exibido é alguém com quem já cursei uma disciplina na UNICAP, embora eu fosse um estranho na turma (acho que era de jornalismo) e tenha passado quase completamente despercebido naquele espaço (sem contar que, pela primeira vez em anos de Cine PE, acomodei-me na parte superior do Cine-teatro Guararapes; o que quebrou um pouco o intimismo foi o fato de eu estar acompanhado, algo que não ocorria fazia anos no evento em questão).
Adentrando no primeiro curta exibido “Dia estrelado” (17 min., de Nara Normande), não há muito o que ser dito; trata-se duma animação stop motion de alta qualidade (na forma), mas pouco significativa no conteúdo (e saliento que minha comparsa naquela noite teve exatamente a mesma opinião que eu). Acaba de me ocorrer um insight no que concerne a expressar o que tal filme despertou em mim: trata-se duma fratura estética, haja vista que a qualidade da forma não se resume ao fato de a animação ser bem feita, mas também ao fato de ser ela expressiva (sempre observo se personagens de animação são realmente expressivos), de a trilha sonora ter sido muito bem encaixada, de o filme ter conseguido criar todo um clima, mas de a tudo isso ter faltado substância. Se em minha resenha sobre o curta “Km 58” (exibido no sábado – ver minha resenha em http://www.miradourocinematografico.blogspot.com.br/2012/05/noite-de-sabado-do-cine-pe-2012.html), afirmei que uma nova edição/montagem da obra poderia melhor aproveitar sua excelência técnica, no que concerne a “Dia estrelado”, penso algo parecido; se a parte técnica tivesse sido direcionada para um outro enredo, o filme poderia ser excelente; porém, da forma que foi realizado ele deixa a sensação de que poderia ter sido muito melhor, embora não chegue a ser ruim.
O segundo curta-metragem exibido foi “A fábrica” (15 min., de Aly Muritiba); trata-se duma caracterização realista da vida num presídio, que não intenta retratar o cotidiano deste, mas apenas uma situação específica nele ocorrida: trata-se da tentativa que a mãe do protagonista faz de entrar no presídio com um celular, para entregar a ele; poucas palavras são proferidas entre mãe e filho no seu encontro e o desfecho surpreendente do filme me fez gostar dele muito mais do que eu pensei que gostaria, ao começar a assisti-lo; sua mistura de hostilidade com afeição foi realizada com maestria.
Terceiro e último curta da noite, “Sonhando passarinhos” (12 min., de Bruna Carolli) mostra a história de uma pequena garota que deseja criar passarinhos; o enredo é simples, o filme é bonitinho (sem conotação pejorativa), as atuações são fracas (mas a guria é espontânea) e, acima de tudo, seu conteúdo é bastante pessoal, embora tal característica (paradoxalmente) desperte empatia de algumas pessoas (o que não foi o meu caso). Valho-me aqui da imprescindível contribuição de Txiliá Credidio, minha comparsa naquela noite, para elucidar o sentido de tal afirmação; segundo ela, os mínimos detalhes do filme remetem ao que foi a infância de uma garota na década de 1990 (experiência com a qual não tive o menor contato, pois não tenho irmã).
Antes de passar aos longas, aproveito para informar que dois dos três curtas tiveram problemas técnicos e precisaram ter sua exibição interrompida para ser(em) posteriormente reiniciada(s). Sobre isto, não poderia deixar de postar aqui a frase paradigmática de minha comparsa Txiliá: “Festival de cinema sem problemas técnicos não é festival de cinema”. Inspirado por ela, formulo a seguinte assertiva: “Cine PE sem atraso não é Cine PE” (quem freqüenta bem sabe...).
O primeiro longa da noite foi “Na quadrada das águas perdidas” (74 min., de Wagner Miranda e Marcos Carvalho). No elenco, apenas Matheus Nachtergaele; seu enredo é bastante simples: mostra o (longo) deslocamento de um sertanejo até uma venda para trocar dois cabritos por alimentos diversos. Como os realizadores deixaram claro ao apresentar o filme, sua intenção era didática, no sentido de familiarizar os espectadores com a paisagem da caatinga e, de fato, ele é surpreendente neste aspecto; vários animais aparecem na obra (cobra, pica-pau, coruja, outras aves; tamanduá, jabutis e mesmo um felino de grande porte – do tamanho de uma onça –, mas que não era nem pintado nem preto, de modo que não sei se era onça); aparece ainda uma colméia, bem como o procedimento do personagem para espantar parte das abelhas e consumir o mel; três espécies de cactos são mostrados, dois deles sendo consumidos. Mesmo no final do filme, quando o protagonista chega na venda, não vemos mais que o braço de seu interlocutor e não há uma única palavra proferida: os produtos desejados são apontados com a mão, limitando-se a isso a comunicação entre os dois homens. Aliás, a única palavra pronunciada no filme é o nome da cadelinha que acompanha o sertanejo; quando nota sua demorada ausência, ele assovia por ela e não obtendo resposta, a chama pelo nome algumas vezes. Isto acentua (e muito) e sensação de isolamento, o que pode tornar o filme um pouco maçante para algumas pessoas. Penso que isto seja proposital e verossímil, haja vista o caráter tour de force da jornada do personagem (muitas são as dificuldades por ele enfrentadas no caminho, inclusive cansaço e tédio). Por fim, cabe salientar que o filme retrata inclusive as crenças locais, como quando mostra o protagonista “assombrado”, juntar algumas pedras e formar um terço para rezar. Em suma, embora o filme não seja exatamente divertido, seu mérito não reside apenas em seu caráter informativo, pois além de informativo ele é interessante, ou seja, ele envolve, funciona.
Fechando a noite, exibiu-se o longa “Estradeiros” (79 min., de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira). Trata-se dum documentário sobre um grupo de jovens itinerantes que residem em diversos locais da América do Sul e que possuem certos traços da cultura hippie em sua organização social. Um dos aspectos mais interessantes do filme consiste em mostrar como o grupo coleta alimentos (em boas condições para consumo) jogados no lixo por supermercados e com isso evitam no só o desperdício, como economizam seu pouco dinheiro (conseguido, por exemplo, através de malabarismos feitos em semáforos). Não há rumo no filme, tal qual a trajetória de um de seus entrevistados: aleatória, como o próprio afirma. Trata-se dum filme interessante, que nos faz pensar e (ao menos para mim), causa certa inveja, embora eu não deseje ter uma vida tão errante quanto a daquelas pessoas.
Em suma, minha opinião de que sempre é possível encontrar coisas boas no Cine PE, mesmo escolhendo aleatoriamente as noites nas quais iremos ao festival permanece.
Dedico este texto a Txiliá Credidio, uma comparsa inspiradora
Alberto Bezerra de Abreu, maio/junho 2012
domingo, 20 de maio de 2012
Pina (parte II)
23:20 |
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Philippine Bausch (1940-2009) ou simplesmente Pina foi uma renomada dançarina, coreógrafa e diretora de balé, de nacionalidade alemã. Wim Wenders (1945-) é um cineasta do chamado Novo Cinema Alemão (movimento cinematográfico iniciado entre as décadas de 1960 e 1970), que teve como expoentes, além de Wenders, Rainer Fassbinder e Werner Herzog (embora este último não se considere membro do grupo, mas “apenas” um simpatizante), entre outros. Atualmente (abril de 2012) se encontra em cartaz no Brasil o filme “Pina” (Wim Wenders, 2011, Alemanha/França/Reino Unido), que une justamente estas duas figuras: Pina e Wenders, que, segundo li em algum lugar, era fã da coreógrafa. Quanto a esta, nunca ouvira falar dela. Já o nome do cineasta não me era estranho; entretanto, embora tenha mergulhado na cinematografia de Herzog desde o início de minha incursão no cinema autoral europeu (em 2006), e embora tenha gostado bastante de algumas de suas obras, só assisti a filmes de Wenders este ano (!) e ainda sou virgem no que concerne às obras de Fassbinder (dos demais integrantes do movimento sequer sei os nomes de cor). Meu primeiro filme de Wenders foi o documentário “Buena Vista Social Club” (1999) e, sem seguida, “Asas do desejo” (1987), ambos constituindo realizações de destaque do cineasta. Não sei se chega a ser paradoxal, mas é no mínimo curioso que “Pina” tenha me remetido muito mais a “Asas do desejo” (que não é documentário) do que a “Buena Vista Social Club”, que o é.
Boa parte das resenhas sobre “Pina” que li na internet destacam um aspecto básico da obra: trata-se dum documentário não convencional; nada é dito sobre sua vida pessoal da artista, exceto menções à sua solidão. Para quem não sabe, o filme foi iniciado com Pina ainda viva e teria uma outra dinâmica; com a sua morte, Wenders pensou em desistir da obra, mas acabou realizando-a de modo diferente do original; a protagonista (se é que podemos chamá-la assim) pouco aparece, e se não me falha a memória, possui uma única fala em todo o filme. Grosso modo, a obra alterna performances de danças dirigidas/coreografadas por Pina como depoimentos de vários dançarinos que trabalharam com ela. Também nisso (nos depoimentos) o filme é não convencional: não vemos os depoentes falando, mas calados, enquanto ouvimos suas respectivas vozes, talvez intentando simular serem tais palavras pensamentos.
Estranhamente, tal estrutura não convencional de “Pina” só começou a ficar minimamente cansativa para mim próximo do final do filme, ao contrário do que aconteceu com o outro documentário aqui mencionado de Wenders (ao contrário de Pina, que me era desconhecida, o Buena Vista Social Club – tema do outro documentário – era por mim conhecido e apreciado); inicialmente pensei desconhecer o motivo, mas pensando um pouco, acredito tê-lo descoberto: por mais que no documentário sobre a banda cubana haja passagens dos músicos tocando, elas são bem mais breves que as coreografias apresentadas em “Pina”, de modo que o efeito estético deste filme é muito maior que o daquele. Faz-se então pertinente a seguinte ressalva: embora tenha assistido “Pina” no cinema, este não possuía a tecnologia 3d, o que talvez acarrete uma lacuna insuperável em minha apreciação da obra. Ao que me consta, tal filme do Wenders foi o primeiro filme de arte a utilizar o recurso 3d e isto, por si só, já o tornaria deveras interessante (pelo que li, alguns dos efeitos 3d enriquecem a obra de maneira impressionante, ao passo noutros momentos a tecnologia mostra-se ainda ineficiente).
“Pina” nada tem de entretenimento; não me divertiu, mas deixou-me pensativo, o que soa paradoxal, haja vista ser o filme calcado na sensação e não no entendimento. Experenciei momentos de um quase arrebatamento, sobretudo no início, quando a coreografia se construía ao som da magnífica Sagração da primavera de Stravinsky. Não defendo aqui que a obra não possa ser entendida, mas que seu foco está na sensação. Como a própria Pina afirma no filme: “Tem coisas que nos deixam sem palavras. E tem coisas que as palavras não dão conta de dizer. É aí que entra a dança”. Altamente recomendado.
Alberto Bezerra de Abreu, abril/maio de 2012
terça-feira, 8 de maio de 2012
Noite de sábado do Cine PE 2012: estética, conteúdo e entretenimento em doses mais que satisfatórias
22:11 |
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À beira do caminho
Maracatu atômico - kaosnavial
Km 58
Até a vista
Jorge Mautner - o filho do holocausto
Heitor D' Alincourt (de preto), Jorge Mautner (ao centro) e Pedro Bial (trajando uma rídicula calça rosa) na apresentação do filme, antes de sua exibição
Maracatu atômico - kaosnavial
Km 58
Até a vista
Jorge Mautner - o filho do holocausto
Heitor D' Alincourt (de preto), Jorge Mautner (ao centro) e Pedro Bial (trajando uma rídicula calça rosa) na apresentação do filme, antes de sua exibição
Embora isto seja vergonhoso, o fato é que não escrevi sobre os filmes a que assisti na edição de 2011 do Cine PE não por falta de tempo ou por não ter gostado deles, mas essencialmente por preguiça. Dois filmes em especial me marcaram naquele ano (ambos longas e documentários): “Augusto Boal e o teatro do oprimido” (62 min., de Zelito Viana) me apresentou a figura extremamente relevante do dramaturgo Augusto Boal, cuja intenção central (não só estética, mas também política) era a de romper a barreira entre atores e público. Lembrou-me Paulo Freire, mas pareceu-me mais interessante, até por conta da dimensão lúdica. O outro filme foi “JMB, o famigerado” (105 min., de Luci Alcântara), sobre o agitador cultural, poeta, ensaísta e cineasta Jomard Muniz de Britto (seu clássico Cult “O palhaço degolado”, curta em super 8 será por mim resenhado mais ou menos em breve). Ao contrário da figura de Boal (cuja existência eu vergonhosamente ignorava), a persona de Jomard já me era conhecida (inclusive já o vi tanto no próprio Cine PE em 2011, como no Cinema da Fundação); no entanto, Jomard é bem menos reconhecido no Brasil do que Boal, e o fato de aquele ainda estar vivo (ao contrário deste último) torna a situação mais escandalosa, em minha opinião. Deixando 2011 de lado, adentremos no presente ano.
Primeiramente, cabe esclarecer que minha breve incursão na edição passada do Cine PE não se limitou a um mea culpa em virtude de minha não cobertura do evento em 2011; mais do que isso, tratou-se de um link com a edição atual do evento, haja vista que o filme mais significativo da noite de sábado do Cine PE 2012 foi um documentário longa metragem dedicado a (mais) uma figura essencial para a cultura brasileira, embora inexistente no âmbito da mídia hegemônica nacional: Jorge Mautner. Mas deixemos o melhor para o final. A noite de sábado começou com a (re)exibição do longa “À beira do caminho” (100 min., de Breno Silveira), devido aos problemas técnicos que prejudicaram o filme em sua exibição na noite anterior do festival. Cabe salientar que peguei o filme já em andamento (cena de “amor” entre o protagonista, interpretado por João Miguel e a personagem de Dira Paes) e não tenho a mínima idéia de quanto tempo de projeção perdi; só sei que deu para entender perfeitamente a obra. Inicialmente o filme me lembrou “Viajo porque preciso, volto porque te amo” (de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz) no mote: caminhoneiro segue pela estrada com dor saudade de sua amada; contudo, não demorou para se tornarem nítidas as diferenças entre os dois filmes: em segundo lugar, o sentimento predominante em “À beira do caminho” não era a saudade, mas a culpa, embora em ambos os filmes a solidão exerça papel destacado; em primeiro lugar, em termos técnicos, estéticos e narrativos os filmes são muito diferentes: “Viajo porque preciso...” pode ser caracterizado como filme algo experimental (ver minha resenha em http://www.miradourocinematografico.blogspot.com.br/2011/01/blog-post.html), enquanto “À beira do caminho” é inteiramente convencional. Não darei uma de intelectual pedante (embora algumas pessoas assim me considerem, não é?); “À beira do caminho” é indiscutivelmente mais divertido (o que não significa que seja melhor filme que “Viajo porque preciso...”); o filme de Silveira e fluido e conta com grandes atuações (o guri é ótimo, e constitui a válvula de escape cômica do longa); contudo, o grande destaque da obra é a atuação de João Miguel (ator que já me chamara atenção no excepcional “Cinema, aspirinas e urubus” também de Marcelo Gomes), sobretudo nas cenas em que está barbudo e sentindo o peso duma enorme culpa. Embora eu deteste Roberto Carlos, não posso criticar a utilização de músicas dele no filme, pois estas se encaixam bem com a temática da obra, além de funcionarem como elementos presentes dentro da própria narrativa (o protagonista aparece em flashback cantando uma música de Roberto para sua amada em seu casamento e um CD do “músico” é posto para tocar no caminhão do personagem principal), constituindo algo de verossímil, haja vista que a “música” de Roberto Carlos possui este caráter popular (seria inverossímil se o protagonista fosse fã de Villa-Lobos, por exemplo). Já no que concerne às músicas instrumentais, as quais não fazem parte da narrativa e servem exclusivamente para criar “o clima” almejado pelo diretor, penso constituírem elas o calcanhar de Aquiles do longa; ora, o filme é emotivo e funciona ao emocionar pelo enredo e pelas atuações, de modo que a inserção de músicas feitas sob medida para levar os expectadores às lágrimas me soou como evidente apelação. Isto, em minha opinião, tornou o filme algo piegas, e isto nada têm a ver com o desempenho dos atores, pelo contrário. Penso que a atuação de João Miguel foi tão boa, intensa e convincente que poderia prescindir, senão de trilha sonora, ao menos de uma que fosse tão forçada. Em suma, minha impressão é a de que, para o diretor, emocionar é igual a arrancar lágrimas, o que definitivamente não é o caso. Considero o filme realmente bom, mas poderia ser melhor se o cineasta não se deixasse levar por aquilo que intitularei como “cacoete spielbergiano”. Lamentável.
A mostra competitiva de curtas-metragem se iniciou com a exibição do documentário “Maracatu Atômico – Kaosnavial” (20 min., de Marcelo Pedroso e Afonso Oliveira); embora valorize a divulgação de nossa cultura popular, penso que o curta não disse a que veio, pois ele não parece nem inovar nem se destacar em relação a outros curtas de temática similar. Faço minhas as palavras de Carolina Santos (Diário de Pernambuco, Caderno Viver, sábado 28 de abril de 2012, p.F1):
“[...] mostra o encontro de Mautner, autor de Maracatu atômico, com o mestre Zé Duda, do Maracatu Estrela de Ouro, de Aliança. O curta traz uma abordagem superficial da relação do músico com a cultura da região. Ensaia um paralelo das vidas de Mautner com Duda, mas parece muda de idéia com imagens de cavalo-marinho. Perde-se na fragmentação de temas em face ao pouco tempo disponível”.
O segundo curta da noite foi “Km 58” (20 min., de Rafhael Barbosa); antes de expor meu comentário, citarei o publicado no Caderno C do Jornal do Commercio (30 de abril de 2012, p.6), com o qual concordo, mas o qual pretendo complementar:
“Apesar de tecnicamente irrepreensível, como uma ótima fotografia e um desenho de som muito inteligente, o filme se desenvolve de uma maneira tão misteriosa que acaba deixando o espectador de fora. O que se percebe é que talvez um homem esconda um corpo no porta-malas de um carro – vê-se uma mão e um braço, mas não temos certeza se é homem ou mulher – e que ele vai se livrar dele”.
De fato, concordo com o comentário postado no jornal: o filme é um primor técnico, mas deixa o espectador de fora, como quando alguém profere uma ótima aula/palestra, mas em nível tão alto que ninguém entende. Pessoalmente, embora tenha admirado a fotografia, encantei-me com a trilha sonora, não só pela qualidade em si (que não interessa tanto), mas por sua vinculação perfeita ao todo. O problema do filme, em minha opinião é que ele não é eficaz em realizar aquilo que me pareceu ser sua proposta principal: fazer com que o espectador sinta a angústia do personagem. O estilo excessivamente hermético e fragmentário da narrativa causa acima de tudo estranhamento, não suspense, muito menos angústia. A reação de algumas pessoas (desconhecidas) que estavam ao meu lado ao final de exibição foi de perplexidade negativa, do tipo “é muito chato, não entendi nada”. Se não estou enganado, trata-se do primeiro filme do cineasta e o fato é que ele e toda a equipe possuem grande potencial, mas que a mistura de elementos de grande qualidade não resultou numa totalidade satisfatória. Em suma: a soma das partes não formou um todo homogêneo e convincente. Me pergunto se uma remontagem do filme não poderia fazê-lo melhorar substancialmente.
O terceiro e último curta da noite foi “Até a vista” (18 min., de Jorge Furtado); trata-se do filme divertido entre os três curtas: leve, despretensioso, bem realizado, mas comum. Assistimos, nos agradamos, mas não somos marcados pela obra, que conta a história dum cineasta gaucho que viaja até a Argentina para comprar os direitos autorais de um livro dum escritor daquele país, para adaptá-lo para o cinema.
Antes da exibição do único longa em competição na noite houve uma relevante homenagem ao cineasta Fernando Meirelles a qual, entretanto, não merece maiores comentários (o ato fala por si). Eis que surge então o ponto alto da noite: o longa-metragem “Jorge Mautner – o filho do Holocausto” (93 min., de Heitor D’ Alincourt e Pedro Bial). O título é inspirado no livro de memórias do escritor, cineasta e músico Jorge Mautner (o título preciso do escrito é “O filho do holocausto: Memórias, 1941 a 1958”). E mais uma vez confesso minha ignorância, pois não conhecia a figura (extremamente relevante, aliás) de Mautner, grande lacuna que o Cine PE preencheu. O documentário merece todos os tipos de elogio, pois além de ter acertado em cheio ao homenagear Mautner ainda em vida (ele apareceu no palco do Cine PE ao lado dos diretores do filme durante a apresentação deste), conseguiu mesclar com excelência o aspecto informativo e a fluidez, não se tornando assim chato, monótono e/ou hermético. Pelo contrário: a imbricação entre conteúdo e entretenimento é perfeita. Os apontamentos de alguns trechos os quais julguei particularmente relevantes no documentário necessitam ser precedidos da seguinte ressalva: há muita coisa absolutamente relevante no filme que ficará de fora deste texto, seja por falha de minha memória, seja por seletividade. O primeiro aspecto que destaco é a assertiva de Mautner (quem possui origem judaico-européia, tendo nascido no Brasil em virtude da fuga de sua família do nazismo), segundo a qual ou o mundo se “brasilifica” ou se “nazifica”. Quando ele afirmou isso ao vivo, durante a apresentação do filme, sem o indispensável complemento da frase, tal assertiva causou-me certo mal-estar: não se trata (que fique aqui absolutamente claro!) de algum tipo de simpatia minha pelo nazismo (nem o fascismo eu suporto), mas antes de minha alergia crônica a toda visão romântica do Brasil como paraíso (o livro “O mito fundador e a sociedade autoritária” de Marilena Chauí possui informações relevantes acerca deste tema); ao me deparar com tal frase de Mautner (não sucedida por seu – repito – indispensável complemento), logo me veio a mente a romantização hipócrita da miscigenação brasileira perpetrada seja por Gilberto Freyre, seja por leitores incompetentes (e/ou mal intencionados) de sua obra. Mais uma vez cabe dissipar a possibilidade de mal entendidos: não sou contrário à miscigenação, mas aos estupros e outras formas abusivas que deram origem nos primeiros séculos de Brasil a esta tão exaltada (acriticamente) miscigenação. No filme, porém, a tal frase complementar dissipou inteiramente me mal-estar inicial, pois Mautner mencionava Jesus de Nazaré e o Candomblé, deixando assim absolutamente claro que sua exaltação da “brasilização” dizia respeito menos a mistura de sangue que a mistura de cultura (abrangendo assim um sentido mais amplo – e complexo – e menos arbitrário que a simples mistura sangüínea, ainda tão mal digerida entre nós na prática, apesar de na teoria ninguém ser racista no Brasil).
Ainda sobre a questão do nazismo, um relato de Mautner sobre um avô (se não me falha a memória, apenas de criação, e não de sangue), que fora sempre muito gentil com ele (em contraste com a posição da avó – esposa deste senhor gentil – que sempre tratava mal o pequeno Mautner), mas que conservava aparatos nazistas em seu quarto, tornou clara a complexidade e ambigüidade das coisas, haja vista que mesmo persistindo fiel ao ideário nazista (isto no Brasil, após a derrocada do regime), o velho homem além de bom, era um artista de vanguarda (algo não tolerado naquele regime). Cabe salientar que tal complexidade/ambigüidade é mencionada explicitamente por Mautner (não se tratando, portanto, duma análise minha).
Outro aspecto de extrema relevância no documentário é a exibição de trechos dum filme longa metragem (inacabado) intitulado “O demiurgo” (1970), dirigido por Mautner (que também nele atua, ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros). Trata-se da mais pura loucura, algo psicodélico-escrachado; o próprio Mautner o define como uma “chanchada filosófica”. Cabe salientar que Gil e Caetano aparecem em entrevistas no documentário falando sobre Mautner; também a filha deste (cujo nome Amora não diz respeito a fruta, mas ao feminino da palavra amor, como nos informa o filme) aparece, numa conversa face a face (divertidíssima, por sinal), relatando como a psicanálise a salvou duma existência muito mais atormentada, haja vista que seu pai (Mautner), a ia buscar na escola trajando nada mais que uma sunga (entre outras práticas nada convencionais).
Não sei dizer que Mautner estudou filosofia academicamente, mas durante o documentário há menções à filosofia que demonstram não ser ela algo inteiramente desconhecido dele; aliás (quase esqueço de pôr isso neste texto), o modo original que ele encontrou de estimular sua filha a ler é bastante interessante (mas só saberá quem assistir ao documentário...). Cabe ainda salientar que intercaladamente com as entrevistas, há performances musicais recentes (especialmente gravadas para o documentário) de Mautner e sua banda, o que permite aos incultos como eu um contato direto com a obra do artista.
Em suma, filme imperdível, e que torna imperativa uma busca não só pela música, mas também pelos escritos de Mautner.
Alberto Bezerra de Abreu, abril/maio de 2012
terça-feira, 24 de abril de 2012
Pina (parte I)
00:28 |
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“West end blues” (Louis Armstrong)
“A sagração da primavera” (Igor Stravinsky)
“Tem coisas que nos deixam sem palavras. E tem coisas que as palavras não dão conta de dizer. É aí que entra a dança” (Pina Bausch)
“Dance, dance, dance. Senão estaremos perdidos” (Pina Bausch)
Os detalhes são imprescindíveis
!? ...
Por Alberto Bezerra de Abreu, abril de 2012
quinta-feira, 12 de abril de 2012
Raul – o início, o fim e o meio: um documentário completo, porém, não equilibrado
23:23 |
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Antes de adentrar propriamente no filme “Raul – o início, o fim e o meio” (2012, Brasil, dirigido por Walter Carvalho), faz-se necessário tecer um breve comentário sobre sua divulgação: vi muito pouca propaganda dele na mídia e mesmo assim me surpreendi com a tímida presença da obra nos cinemas de Recife, haja vista a imensa popularidade de Raul Seixas, a qual não se restringe a uma determinada região (como no caso de Luiz Gonzaga) ou a uma determinada classe social (como – ao menos assim me parece – acontece com Chico Buarque); em termos mais explícitos: Raul foi deveras popular em todo Brasil (ou pelo menos em muitos locais do país) e entre diversas classes sociais, o que torna, a princípio, bastante estranha ausência de uma forte propaganda divulgadora do filme. Contudo, não me foi necessário pensar muito para chegar a uma resposta para tal descaso: penso dever-se ele ao fato de o filme tratar-se dum documentário, gênero cinematográfico não muito popular/rentável no Brasil. Tome-se como exemplo o renomado cineasta paulista Eduardo Coutinho, referência no âmbito dos documentários cinematográficos, mas ignorado pelo grande público. Igualmente servem de exemplos os filmes não documentários “Cazuza – o tempo não para” (2004, Brasil, dirigido por Sandra Werneck e – justamente – Walter Carvalho) e “Dois filhos de Francisco” (2005, Brasil, dirigido por Breno Silveira), ambos bastante divulgados pela mídia hegemônica.
No que concerne à temática do filme, não há como começar a presente exposição sem mencionar o fato central (que nomeia o presente texto): trata-se dum documentário completo. Ao optar por não se centrar numa época específica da vida de Raul, mas em toda ela, o cineasta pretende uma abordagem total de figura de Raul Seixas: artista, homem e mito. A exposição se inicia mostrando imagens de Raulzito ainda (pré)adolescente, de gola levantada e topete, imitando seu ídolo (não só de juventude), Elvis Presley, e já naquele tempo bebendo e fumando. Neste início de filme são expostos alguns depoimentos interessantes de Waldir Serrão, amigo de juventude, que mostra o local onde se reunia o “Elvis rock club”, o modo peculiar como os jovens fãs baianos de Presley se cumprimentavam, entre outros aspectos curiosos. A ênfase no caráter de rebeldia que o rock representava para os jovens da época (ainda mais no nordeste, onde o novo estilo musical ainda não havia se popularizado) é central para uma melhor compreensão da figura de Raul e é expresso a contento no filme.
No que concerne ao início da carreira musical de Raulzito, são apresentados depoimentos de produtores, tratando desde o disco “Raulzito e os Panteras” (1968) e “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10” (1971), até seu disco de estréia em carreira solo, “Krig-há, Bandolo!” (1973), contendo clássicos como “Mosca na sopa”, “Al Capone”, “Metamorfose ambulante” e “Ouro de tolo” (esta última sendo bastante elogiada por Caetano Veloso, que inclusive interpreta um trecho dela em voz e violão).
Numa passagem que adquiriu um significado mais abrangente para mim através do filme, alguém menciona a inovação de Raul ao misturar rock com baião em “let me sing, let me sing”. Ora, embora já houvesse atinado para tal fusão eu ignorava ter sido precursora, como é apontado no documentário. A menção ao fato (por mim já sabido) de que no Brasil houve até passeata contra o uso da guitarra elétrica (convém salientar que embora o termo “guitarra elétrica” seja redundante no Brasil, ele não o é noutros países), bem como o apontamento em dois momentos do filme (se não me engano, um deles provindo do próprio Raul), de que Raulzito era fã de Luiz Gonzaga levaram-me a perceber um aspecto complementar desta fusão de rock e baião: tratou-se igualmente da fusão de dois reis: Elvis Presley e Gonzagão.
Outro entrevistado que merece destaque é Sylvio Passos, fundador do Raul Seixas Oficial Fã-Clube (1981) e amigo de Raultizo, tendo recebido do próprio grande quantidade de gravações não lançadas em disco. Também as várias esposas de Raul aparecem no documentário, exceção feita à primeira (Edith Wisner), de quem é lida uma pequena carta onde ela justifica sua opção por não conceder entrevista; as demais companheiras do “maluco beleza” (Glória Vaquer; Tania Mena Barreto; Kika Seixas e Lena Coutinho) fornecem depoimentos importantes e elucidativos (em minha opinião, sobretudo as duas últimas). Também a empregada/governanta de Raul na época de seu falecimento é ouvida, mas ao proferir afirmações como a de que nunca viu o cantor embriagado parecem demasiado forçadas. Kika menciona episódios em que Raulzito bebia, vomitava, bebia novamente, este processo de repetindo inúmeras vezes até que ele conseguisse reter algum álcool no corpo. Outra pessoa (Lena, se não me engano) fala de uma ocasião em que o músico estava todo vomitado no quarto e de como achava necessário ele passar por isso, chegar ao fundo do posso para querer sair. Kika afirmou que Raul tentou parar várias vezes, mas não conseguiu, tendo chegado a ser internado contra sua vontade numa clínica de reabilitação.
O escritor Paulo Coelho, mais famoso parceiro de Raul nas composições (letras) também aparece no filme; numa de suas afirmações, menciona duas músicas de Raul que gostaria de ter composto com ele: “Maluco beleza” e “Metamorfose ambulante” (surpreendentemente não menciona “Ouro de tolo”, também composta só por Raulzito). O documentário tematiza a aproximação de ambos (foi Raul que procurou Paulo), bem como a insistência daquele para que este compusesse com ele (haja vista que Paulo não só não sabia compor letras – como ele mesmo afirma –, mas inclusive desprezava este caráter mainstrem da música, optando por um viés alternativo, sendo justamente a possibilidade de divulgar a mensagem da “Sociedade Alternativa” para grande número de pessoas o que o convenceu a adentrar neste meio). Neste sentido, aponta-se a influência “mística” que Paulo exerceu sobre Raul que, até então era “meio ateu” (não lembro quem proferiu essa frase, mas recordo ter me pego pensando no cinema: como pode ser alguém “meio ateu”?). O cineasta entrevista um líder do grupo (inspirado em Alester Crowley) do qual Paulo e Raul fizeram parte; numa assertiva deveras interessante, o ancião esclarece que a palavra “demônio” foi deturpada pelo cristianismo, e que Sócrates possuía o seu próprio demônio (mais precisamente, trata-se do termo “daimon”, cujo sentido é divindade, espírito ou gênio, que pode expressar o bem ou o mal, ao contrário do maniqueísmo cristão). É mostrado ainda um depoimento de Raul acerca do que seria o “satanismo” por ele defendido (por exemplo, na música “Rock do diabo”), o qual nada tem a ver com uma ideologia maléfica e destrutiva, mas simplesmente com uma afirmação da liberdade criativa das pessoas (embora o documentário não aponte este fato, parece-me nítida a inspiração que a crítica de Nietzsche ao cristianismo exerceu em Raul). Por outro lado é mostrada uma cena em que ocorre sacrifícios de animais (pareceu-me real, mas não tenho certeza; e vi apenas um dos barbudos, sem conseguir identificar se era Raul ou Paulo, embora a cena tenha sido rápida e talvez ambos estivessem ali). Paulo afirma que eles cometeram excessos e que todos pagaram por isso. Nelson Motta, ao tratar do convite de Raul (e insistência, ante a recusa de Paulo) para comporem letras juntos, afirma que Paulo, num raro momento de humildade/modéstia, confessara que não sabia escrever letras. A afirmação de Motta é importante, pois, para quem presta atenção em detalhes fica patente a grande vaidade de Paulo Coelho. Este menciona inclusive que ele e Raul tiveram vários desentendimentos, tendo chegado provavelmente (ele não tem certeza!) a trocarem sopapos pelo menos uma vez. Define a relação entre ambos como um casamento sem sexo, mas o (excelente) registro do último encontro entre eles (após muitos anos), realizado em pleno palco, durante a turnê de Raul com Marcelo Nova (sendo este quem combinou tudo com Paulo, sem que Raul soubesse), mostra como a admiração, respeito e quiçá carinho entre ambos não se dissipou, apesar dos desentendimentos, originados principalmente por uma rivalidade entre eles.
Outros dois momentos de Paulo Coelho que merecem destaque no documentário são aquele em que uma mosca atrapalha sua fala (trata-se duma clara alusão à música “Mosca na sopa”, música, aliás, composta apenas por Raul), sugerindo-se que a mosca seria (literalmente Raul). Caso aquilo tenha ocorrido espontaneamente, certamente consistiu em algo deveras significativo, mas, por algum motivo que não saberia explicar, a cena me pareceu planejada, montada, para não dizer forjada. O outro momento consiste na declaração de Paulo, segundo a qual foi ele quem apresentou todas as drogas ao careta Raul, que então só bebia e fumava. Porém, Coelho refuta qualquer responsabilidade pelo desfecho final de Raulzito, haja vista que este já tinha por volta de 27 anos quando foi iniciado no mundo das drogas ilícitas.
Uma parte do filme extremamente significativa para mim foi aquele em que alguém (que não lembro) mencionou os plágios de Raul; para quem não sabe, o músico freqüentemente se apropriava de músicas estrangeiras, compondo letra nova para pôr nelas, sem que isto fosse creditado como aquilo que no Brasil se conhece como “versão”. Segundo este entrevistado, Raulzito justificava tal procedimento alegando que já éramos por demais colonizados e que seu empreendimento consistia numa espécie de expropriação. A importância fundamental de tal declaração reside no fato de que Raul não era um oportunista barato como cheguei a pensar logo que soube destes “plágios”, mas que seu intento era crítico-anárquico (muito bem sacada foi a execução de trecho da música anti-colonialista “Aluga-se” neste trecho do documentário, pois sua letra bem expressa a opinião de Raulzito acerca da exploração que o Brasil sofre enquanto país periférico).
Outro aspecto importante abordado no filme concerne à relação entre Raul e Marcelo Nova; este foi responsável pelo ressurgimento artístico de Raulzito (seu ídolo), através de uma turnê (de ambos) que teve 50 shows e resultou na gravação do disco “A panela do diabo”. O fato é que muitos acusam Marcelo Nova de ter se aproveitado de Raul, mas em depoimentos realmente significativos, ninguém menos que Caetano Veloso (também baiano), afirma não ter notado nenhuma espécie de oportunismo, pelo contrário, percebeu foi a grande reverência de Marcelo Nova para com Raulzito, bem como a sinceridade de suas boas intenções. Assim também me pareceu. Além disso, Raul não era de modo algum ingênuo.
Após ter apontado os momentos do filme que considerei mais significativos, mencionarei pontualmente alguns outros momentos interessantes: o primeiro deles trata-se da homenagem que Raul faz para Glauber Rocha durante um de seus shows; o filme não contextualiza este momento, mas suponho que tal menção de Raul ao cineasta (baiano como ele) tenha se dado quando este morreu. A breve aparição de Tom Zé, cantando a cômica música “A chegada de Raul Seixas e Lampião no FMI” também merece ser mencionada. Quanto ao depoimento do jornalista (e projeto precário de poeta) Pedro Bial, cabe dizer que (para variar), nada de relevante acrescenta. Também me surpreendi em ver a figura do produtor André Midani entre os depoentes, haja vista que numa de suas músicas Raul dá uma alfinetada nela, citando literalmente seu nome. Deve ter sido um desentendimento momentâneo. Por fim, me impressionei ao ver como o neto pré-adolescente de Raul é parecido com ele em sua juventude (cabe salientar que Raulzito só teve filhas).
Em suma, o documentário sobre Raul Seixas é completo, pois trata de todos os aspectos relevantes de sua vida, contornando assim o perigo da pretensão de totalidade, haja vista de que nenhum aspecto fundamental é omitido. Por outro lado, trata-se duma obra que não possui equilíbrio, pois todos os depoimentos são inteiramente favoráveis ao personagem do documentário, tendo como única exceção uma certa alfinetada de Paulo Coelho, onde este afirma que a história do exílio de Raul não foi bem como este contou (e Coelho diz inclusive que se a equipe do filme investigar, constatará o que ele afirmou); no entanto (e aqui há uma omissão do cineasta em se aprofundar no tema), pouco se fala dos problemas de Raul com a ditadura; a única fala acerca do tema além da de Paulo Coelho advém da mãe de Raulzito, que afirma ter ele chegado em casa com as costas ensangüentadas; ainda segundo ela, enquanto lavava as costas do filho, este disse para ela ser rápida, pois havia dois homens na porta do apartamento esperando por ele (trata-se do exílio supostamente forçado). Em sua fala, Paulo afirma que ele é que foi preso (se levarmos em conta o fato de que pessoas famosas possuíam um relativo “escudo”, pois qualquer fato que lhes acontecesse teria grande repercussão, somado ao fato de que Paulo Coelho não era famoso como Raul, seu relato parece verossímil). De qualquer forma, não se trata aqui de um desejo meu de condenação da figura de Raulzito, até porque simpatizo com ele. Trata-se apenas de chamar atenção para o fato de que o culto exacerbado de sua figura contraria as próprias crenças do artista (ao menos assim me parece). Não acho que o filme tenha exagerado neste aspecto, inclusive considero sábia a decisão de não se ter estendido muito as cenas do velório de Raul, bem como o registro de uma das homenagens que todo ano são feitas a ele (se não me engano, na Avenida Paulista, em São Paulo). De qualquer forma, esta pequena ressalva não tira o brilho do filme, que é informativo, divertido, fluído (não é cansativo, como por vezes é o ótimo documentário de Wim Wenders sobre a banda Buena Vista Social Club, ao qual assisti recentemente), constituindo uma ótima pedida tanto para os fãs do “maluco beleza” como para aqueles que, não o conhecendo bem, intentam fazê-lo.
Ps. Dedico esta postagem a meu amigo (e colaborador deste blog) Pedro Tenório, cujo convite me levou a assistir ao filme aqui resenhado.
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- Miradouro Cinematográfico
- Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)
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