terça-feira, 14 de agosto de 2012

PostHeaderIcon A estética da loucura e do cagaço em Superoutro (Edgar Navarro)













Por Pedro Sobral*



No ano de 2003, a Fundação Joaquim Nabuco (no Recife) exibiu três curtas do realizador baiano Edgar Navarro: Lin e Katazan, O Rei do Cagaço e Superoutro. Lembro-me do chamamento impresso no folder da programação: “Você não verá nada igual no cinema este ano”. Deveras. Na primeira tomada de O Rei do Cagaço, por exemplo, nos deparamos com a câmera focalizada no tão vilipendiado e menosprezado ânus – e em plena atividade de ejeção. Apesar do alerta impresso, parte da platéia evacuou (atente à polissemia do verbo) a sala de projeção voluntariamente, como não poderia deixar de ser.

O cinema é prodigioso em mostrar o ato da ingestão dos alimentos como um momento de confraternização, de crescimento e felicidade. Um grande exemplo seria A Festa de Babette – sem esquecer, é claro, um seu antípoda, o clássico italiano La Grande Bouffe, de Marco Ferreri. Por outro lado, a ejeção sempre compôs o invólucro das baixezas humanas, o perverso (etimologicamente do latim per, a preposição “por” e versum, “trás”). Mas, tudo que entra tem que sair. E ninguém filmou a segunda parte deste simples adágio com tanta propriedade quanto Edgar Navarro.

Em Superoutro (1989, 47 minutos) vê-se um esquizofrênico morador de rua (Bertrand Duarte, irretorquível) perambulando pelas vielas e pontos turísticos de Salvador. Uma noite, depois de um acesso de loucura, invade um condomínio de classe média na capital baiana bradando: “Acorda, humanidade!”, como se pedisse o despertar da consciência dos mais validos em direção aos miseráveis. A partir de então, as vozes não mais param na cabeça do Esquizofrênico e se processam uma série de episódios cômicos, trágicos e escatológicos.

Mereceria um artigo à parte a fixação de Edgar Navarro pelo ânus e a ejeção (Freud explicaria isso através da fase anal da criança: ela tenta controlar os pais através do jogo de retenção/expulsão das fezes): é o desbunde – literalmente – elevado à derradeira potência. Da mesma forma que na abertura de O Rei do Cagaço, temos em Superoutro a visão privilegiada do esfíncter anal de Bertrand Duarte em trabalho pleno e absoluto. Recordo-me da frase expelida por um ex-professor, já falecido, quando cursava pós-graduação (não lembro o contexto do dito): “O cu é bom demais. Sem o cu a gente explode”.

O escatológico nas artes nunca foi novidade, vide as obras do italiano Piero Manzoni que, em 1961, defecou em várias latas colocando a etiqueta Merde d’artista, vendendo-as a preço de ouro para diversos museus mundo afora; algumas cenas de Philippe Noiret (em especial num momento de prisão de ventre e flatos) no supracitado La Grande Bouffe; o roqueiro punk GG Allin que durante suas performances costumava defecar no palco, jogava uma parte na platéia e comia também um bom bocado justificando-se que “não gostaria de ver seus dejetos indo por qualquer canto” (Ah, bom – faz sentido! Pensei que fosse loucura!); muito antes, na literatura de François Rabelais (1483–1553), o escatológico se fazia presente. No Gargântua, Rabelais descreve as ferramentas do jovem gigante para limpar o ânus:



O cachecol de veludo de uma dama, um lenço de pescoço, um tapa-orelhas de cetim, a touca de uma pajem, um “gato de março” (que lhe arranhou o traseiro com as patas), as luvas de sua mãe perfumadas de benzina, a sálvia, o funcho, o aneto, folhas de couve, alface, espinafre (série comestível), as rosas, a urtiga (sic), as cobertas, as cortinas, os guardanapos, o feno, a palha, a lã, o travesseiro, os sapatos, um alforje, um cesto, um chapéu. O melhor limpador de cu é um gansinho com a penugem macia: (...) tanto pela maciez dos pelos quanto pelo calor que se transmite pelo intestino reto e pelas outras entranhas, chegando até a região do coração e do cérebro.



Está na escatologia uma das melhores cenas de Superoutro: quando o Esquizofrênico defeca sobre um jornal, na beira-mar de Salvador (e aqui se pode abrir o parêntese da relação da loucura, normalmente suja e impura, com a água – límpida, cristalina e terapêutica, tal como pregava o psiquiatra francês Leuret, no século XIX, no tratamento de choque de seus pacientes com fortes duchas) e mela com seus resíduos a camisa de uma versão baiana de playboy – o rapaz incauto está parado no semáforo, dentro de um automóvel Santana Quantum, engravatado e escutando o impagável hit oitentista Kátia Flávia, de Fausto Fawcett.

Se os dejetos sólidos têm o poder de causar o riso, de desarmar a sisudez, libertar um da tirania e promover o desbunde total, o Esquizofrênico, nosso anti-herói de Superoutro, se mostra demasiado humano, e não um ser de outra natureza: como todos nós ele come, bebe, evacua e peida. Só que tudo isso numa escala enlouquecida e miserável.



*Pedro Sobral é licenciado em história pela Universidade Católica de Pernambuco, bacharelando em ciências sociais pela UFPE, professor da rede pública e particular e cinéfilo nas horas vagas.


7 comentários:

Miradouro Cinematográfico disse...


Primeiramente, cabe-me agradecer a Pedro não só por (mais) uma colaboração, mas, mais do que isso, pelo envio daquele que considero a melhor de suas resenhas cinematográficas as quais tive acesso até agora (duas postadas anteriormente neste blog: "A revolução não será televisionada" e "Polícia, adjetivo").

Em segundo lugar, cabe-me agradece-lo por ter-me apresentado às obras de Edgar Navarro, do qual jamais ouvira falar (aliás, todas as resenhas de Pedro foram de filmes que eu nao havia visto).

Em terceiro lugar, agradeço a ele por ter gravado "Superoutro" para mim; contudo, protelei o ato de assisti-lo (não tanto quanto protelei a publicação deste texto, o qual guardei para uma ocasião especial a qual, porém, não posso revelar), de modo que meu primeiro filme de Navarro foi o recente "O homem que não dormia" (no qual sua obsessão pela defecação não se faz presente, mas a por "rolas" sim), assistido no cinema São Luiz. Embora seja um primor estético, este me passou a sensação de dilentatismo, ausente em "Superoutro", filme feito p/ chocar o vulgo, mas relativamente fácil de compreender. A supracitada frase "Acorda humanidade", proferida logo no início do filme não deixa dúvidas quanto a isso. Navarro é um provocador nato e, inspirado ou não, passou a me interessar deveras.

Pedro disse...

Alberto, eu é que lhe agradeço pela oportunidade de publicar no Miradouro. Ainda que o debate seja um mero diálogo, é sempre válido discutir a recepção de um filme tão estranho - ao menos diante da normalidade catatônica de 90% da produção cinematográfica nacional.

Se você acha que Navarro gosta de filmar "rolas" (ri demais com essa sua...), veja o curta Exposed - de apenas sete minutos - no Youtube.

mara* disse...

Também não conhecia Edgar Navarro. E parece que o criativo, irreverente e provocativo baiano vai muito além de qualquer coisa, um autêntico representante daquilo que se convencionou chamar de anticonvencional. Vi alguns trechos de seus filmes no youtube, as falas dos personagens são impactantes, ri muito.
O menosprezado ânus já foi tema na música. A capa do disco ‘Todos os olhos’ de Tom Zé, uma das mais polêmicas capas de disco do Brasil, traz uma bolinha de gude devidamente encaixada nos lábios que mais parece um ânus. O disco foi lançado em plena época da ditadura O disco é genial e a capa também. O lado ‘bom’ da ditadura no Brasil foi estimular a criatividade dos artistas para fugir dos censores. A produção musical e artística tinha mais qualidade e se tornou a grande trincheira de resistência aos ditadores. E Tom Zé, um performático da arte, com seu protesto, transgrediu uma época infeliz da nossa história. Este disco de Tom me fez lembrar algumas capas horrorosas e controversas. A banda ‘Type O’ Negative’ colocou o ânus do seu vocalista no álbum ‘The origin of feces’. Um horror, que depois foi substituída.
Já o excêntrico Screamin' Jay Hawkins, o bluesman maníaco que foi o pioneiro no rock-show de horrores e nas apresentações recheadas de elementos macabros sendo copiado por Alice Cooper e Ozzy Osbourne, não foi tão escroto quando o roqueiro punk GG Allin. Mas, sua composição ‘Constipation Blues’ foi descrita como grosseira e em um dos festivais de blues em Paris ele cantou a música com um vaso sanitário no palco.

PS: os links de Jimmy Smith foram corrigidos e o álbum 'The Cat' foi incluído ;)

Alberto Bezerra disse...

Pedro: MEDO de assistir isso rs. Mas será superado, no tempo certo. E acho que se trata de mais de 90%.


Mara: Navarro e Tom Zé são ambos baianos, não? Mera coincidência?

Estou baixando discos que trazem gatos na capa, por isso meu interesse pelo "The cat" (e isso me levará aos demais). AGradeço o atendimento do pedido ;)

Anônimo disse...

Olá Alberto,

O Pintando Música original deixou de existir, e o motivo foram as denúncias do DMCA, a lei dos direitos autorais dos EUA.

E como eu já esperava por isso, eu tinha o backup do blog.

Portanto, o novo endereço é: http://pintandomusica4.blogspot.com.br/ e se este também for abduzido o outro endereço será http://pintandomusica5.blogspot.com.br/ e assim sucessivamente.

E com a força dos amigos como você, sigo em frente com o que gosto de fazer, divulgar a boa música.

Um grande abraço.

Mara*

Pedro S. disse...

Mara,

Particularmente, o único disco que conheço bem do Tom Zé é o Com Defeito de Fabricação, de 1999. Quanto à capa que você citou do baiano, li há poucos dias a edição da revista Bravo (julho, acredito) em que o provocador Tom Zé está de calcinha e o disco Todos os Olhos é lembrado na entrevista. Nunca imaginava que o Type o' Negative, com aquele som um tanto gótico, de letras majoritariamente românticas, teria na capa um ânus. Olha, por que você classifica a capa do Type de "horror" e a de TZ como "genial", afinal de contas ânus é ânus. Lembrei-me da vídeo-artista Juliana Calheiros que em 2003 ou 04, expôs na Galeria Baobá/Massangana, da Fundaj,a instalação "Bolo de chocolate". Para um incauto, ela aparentava fazer - servindo-se de slides - de uma espécie de pompoarismo anal com seus próprios excrementos: era como se fossem tiradas fotografias de Calheiros evacuando e quando as "fezes" dela iam cair, ela as puxava de volta, num rápido movimento muscular - acho que isso sequer é possível. Para meu alívio (palavra pertinente diante da discussão das necessidades fisiológicas), o monitor da Fundaj segredou que todos os movimentos foram filmados pela boca da artista, macerando um apetitoso bolo de chocolate e simulando a evacuação. Influência direta, é claro, do supracitado Piero Manzoni.

Pedro S. disse...

Alberto,

Não acho que o fato de Tom Zé e Navarro serem baianos tenha influenciado substancialmente essa essência provocadora em ambos. Lá no passado remoto, no regime militar brasileiro, os dois em suas áreas respectivas deveriam ser considerados os artistas "à margem" dos marginais. Um curta como o Rei do Cagaço deve ter sido visto apenas por poucas centenas de pessoas, em salas obscuras do centro decadente de Salvador, quando filmado lá no início dos anos 80 - no momento em que os militares já haviam permitido o início da transição para o regime civil. Tom Zé, apesar de genial e influente, só foi retomar a carreira depois da intervenção do David Byrne, na segunda metade dos anos 90. Não passava de outro "ex-centricus" que deve ter passado apertos nos anos de ostracismo...

P.S. Não tenha medo do Exposed. Só não procure nuances estéticas, pois não encontrará, ehehe!

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Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)
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