segunda-feira, 6 de agosto de 2012

PostHeaderIcon Mostra Beckett do Cineclube Dissenso: um “acontecimento”?



Esboço para teatro I (Rough for theatre I)

Encenação (Play)

                                                                              Fim de partida (End game)




Entre os dias 25 e 28 de julho do presente ano o Cineclube Dissenso (atualmente sediado no prédio do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife) exibiu uma mostra de filmes (curtas e longas metragem) baseados na(s) obra(s) do escritor/dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Embora (ainda) nada tenha lido do autor, a exibição de tais filmes se deu em sincronicidade com o brotar de meu interesse por ele; já na edição de 2010 do festival pernambucano de artes cênicas Janeiro de Grandes Espetáculos, quando Antônio Abujamra encenou a peça (?) “Começar a terminar” (texto do próprio, inspirado em obras de Beckett), comecei a me interessar pela obra do irlandês, alimentado pela ótima cobertura dada pelos jornais locais (embora tenha perdido esta encenação por ter sido ela realizada no teatro Barreto Junior, na distante – para mim – zona sul da cidade). Acabei, assim, deixando Beckett de lado. Entretanto, em meados do ano seguinte, a figura do autor de “Esperando Godot” ressurgiu (novamente de maneira indireta) para mim, através de insistentes menções a uma célebre frase dele, redigidas pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek; em “Primeiro como tragédia, depois como farsa” (Boitempo, 2011), referindo-se à perseverança de Lenin, afirma Zizek: “Esse é Lenin em sua melhor forma beckettiana, fazendo eco à frase de Pioravante marche: ‘Tente de novo. Erre de novo. Erre melhor’” (ZIZEK, 2011, p. 79). Na mesma obra, o esloveno volta a utilizar a frase do irlandês, desta vez na página 108. Também no livro “Em defesa das causas perdidas” (Boitempo, 2011), Zizek utiliza esta máxima beckettiana, referindo-se desta vez a Kant e a Mao Tse-Tung (p. 215).

Ressurgido assim meu interesse por Beckett, comecei a procurar uma tradução portuguesa da tal “Pioravante marche”, e me deparei com sua suposta inexistência (ao que me consta, há pelo menos uma tradução em português de Portugal, mas aparentemente de difícil localização). Pesquisando um pouco mais, eis a grande descoberta: o tal texto acabara de ser traduzido em edição nacional (sob o título “Pra frente o pior”); trata-se do livro “Companhia e outros textos”, cuja tradução para o português brasileiro foi realizada por Ana Helena Souza, sendo o livro lançado em 2012 pela Editora Globo. Bastou meu interesse por Beckett ressurgir (de maneira direcionada, ao contrário do que ocorrera em 2010) para que o texto em questão fosse lançado em português (e por um preço acessível!) e, na seqüência, o supramencionado cineclube levasse a frente à realização da mostra sobre a qual este texto se debruça. Para que pensou em coincidência, repito o termo supramencionado: sincronicidade.

Adentrando (enfim) aos filmes exibidos na mostra, não os comentarei individualmente, pois isto seria bastante desgastante para mim e para os leitores deste blog (sim, eles existem, embora não costumem comentar...). Sugiro que, caso alguém tenha algo a dizer especificamente sobre algum dos filmes exibidos, que empreendamos um debate na parte dos comentários. Pois bem, a primeira coisa a se falar da obra de Beckett é que ela exige muito do leitor/espectador, não só por sua profundidade, mas também por sua forma; sem medo de ser polêmico, afirmo com todas as letras: não raro sua obra é maçante. Entretanto, de modo algum isto implica necessariamente ser ela desinteressante. Voltando brevemente ao supracitado livro “Companhia e outros textos” (uma coletânea, como o título deixa claro), adquiri-a prontamente, porém, renunciei a sua leitura imediata ao ler o prefácio de Fábio de Souza Andrade, pois este deixou claro que os textos exigiram de mim mais do que eu poderia dar no momento (não por falta de interesse, mas devido a outras prioridades). Dessa forma, o contato com a obra beckettiana adaptada para o cinema veio a calhar, pois me tomou “apenas” algumas horas, ao passo que a leitura dos “contos” me levaria dias, quiçá meses (o livro tem menos de 100 páginas, se desconsiderarmos o prefácio que não é do próprio Beckett, mas leio “degustativamente”). Uma característica comum de todos os filmes exibidos (ao menos de todos que pude assistir, pois perdi a exibição do último dia, justamente o de “Esperando Godot”) consiste no fato de a encenação se restringir a um único espaço: uma rua, um cômodo de uma casa, o espaço interno de um teatro, etc. Além disso, em alguns filmes a verborragia (não uso o termo em sentido pejorativo) tornava inevitável e perda de algumas palavras por parte dos espectadores, mesmo num filme como “Encenação”, no qual todo o texto é repetido integralmente. Aliás, falando em texto, cabe aqui uma informação de grande relevância: de acordo com os organizadores do evento, todas as adaptações primaram pela fidelidade aos textos originais, conservando-os integralmente nas encenações (também se mencionou o excesso de cuidado que Beckett tinha com seus escritos, não deixando que fossem encenados – seja no cinema, seja no teatro – por qualquer um).

Outro aspecto pelo qual o cineclube merece destaque positivo consiste no fato de não se limitarem a contextualizar os filmes antes de sua exibição, mas empreenderem também debates ao final; embora seja mais de ouvir do que de falar quando me encontro entre estranhos, foi-me impossível não me pronunciar sobre a (muito) grande semelhança existente entre o supracitado “Encenação” e a peça “Entre quatro paredes” de Jean-Paul Sartre: em ambos, vêem-se três pessoas no inferno (um homem, duas mulheres); em ambos há algo de triângulo amoroso, embora de maneira ambígua; em ambos há o eterno retorno (repetição contínua do castigo, remetendo ao mito de Sísifo – aliás, título de uma obra de Albert Camus, contemporâneo de Sartre e Beckett –, ao mito de Prometeu, entre outros mitos gregos). Saliento desde já ter sido este um de meus filmes favoritos. Nele o elemento estético alcança nada menos que a perfeição. As atuações também são soberbas.

Nada há de coincidência no fato de outro de meus favoritos na mostra –“Esboço para teatro I” –, ser, igualmente, de um primor estético invulgar. Neste filme (que se passa numa esquina em ruínas, cenário típico pós-guerra), vemos o diálogo entre o mendigo cego e um cadeirante (ambos idosos); este último propõe ao primeiro: “você me empurra e eu lhe guio”. A colaboração entre eles não se converte em realidade e o filme se encerra com direcionando seu “cajado” em direção ao cadeirante com intuito de agredi-lo violentamente, após ter sido humilhado durante quase toda a conversa; a mensagem me parece de uma clareza desoladora: embora pudesse complementar-se “perfeitamente” no caso de colaborarem, ambos os homens sequer conseguem conversar civilizadamente. A degradação humana constitui um tema recorrente em Beckett, embora algumas vezes sendo retratada com ironia, outras vezes, de forma bastante “crua”.

Dentre os longas, minha preferência elegeu “Fim de partida”; embora haja nele algo de semelhante ao filme acima citado, haja vista que um dos protagonistas não pode ficar de pé (além de aleijado é cego, possuindo assim as deficiências de ambos os personagens de “Esboço para teatro I”), ao passo que o outro (seu “criado”/empregado), sendo manco, não pode sentar-se, o que mais me chamou atenção no filme foi o fato de ter sido ele o único dos longas que assisti que não me causou nenhuma espécie de enfado (os outros longas que assisti foram: “Dias felizes” e “A última gravação”, não sendo demais repetir que perdi a exibição de “Esperando Godot”). Cabe salientar que não considero o enfado despertado por um filme como algo necessariamente ruim; pelo contrário, posso considerá-lo com um diferencial positivo, desde que ele seja proposital e transcenda a intenção de ser maçante sem mais. No entanto, não pude deixar de me espantar com a maneira fluída de contemplar um filme complexo, restrito a um único ambiente, em contraste com os dois longas que havia assistido nos dias anteriores (será um diferencial dele, ou estaria eu me acostumando em demasia com as idiossincrasias beckettianas?). Outra coisa, embora a apresentação de personagens fragmentados (em muitos filmes foram exibidas apenas cabeças dos personagens), penso que em nenhum deles este expediente alcançou a dimensão do bizarro tão bem quanto em “Fim de partida”: nele, os pais do protagonista patrão não possuíam corpo da cintura para baixo (em virtude de um acidente), e viviam, cada qual e uma lata de lixo. Embora a relação entre os protagonistas (patrão-empregado) fosse pesada (nitidamente sado-masoquista no sentido não sexual-genital do termo), ela me pareceu essencialmente verossímil, contrariando a dimensão do absurdo que tornou Beckett célebre; contudo, o aparecimento dos pais nas suas respectivas latas de lixo (!) a certa altura do filme acrescentou ao filme uma dimensão de bizarrice (absurdidade) inesperada e só não desconcertante por tratar-se de Beckett.

Em suma, a experiência foi deveras enriquecedora, na reflexão, no enfado, no deleite estético, no estranhamento (tudo isso propiciado pelas próprias obras), bem como pelas informações (fornecidas pelo pessoal do cineclube) e pelos debates (promovido pelos organizadores do cineclube, mas com participação ativa de alguns dos espectadores).

Ps. 1: o próprio pessoal do cineclube divulgou um blog no qual pode-se assistir a todos os filmes exibidos na mostra:http://beckettemfilme.blogspot.com.br/

Ps. 2: o termo “acontecimento” utilizado no título deste texto remete a uma noção de Alain Badiou (o qual também conheci através de Zizek).



Alberto Bezerra de Abreu; 06/08/2012 (redigido ao som de Thelonious Monk – “Monk’s blues”, Dizzy Gillespie – “Dizzy’s party” e John Coltrane – “Coltrane”).



Dedico este texto a Marcel Koury e Gorette Silva (ambos – cada um a seu modo – apreciadores de Beckett) e a Alessandra Alencar, responsável pela inclusão do conceito junguiano de “sincronicidade” neste texto (embora ela não saiba que o estou redigindo =)



7 comentários:

Gorette Silva disse...

Estava apreciando tanto o texto, tão sinceramente redigido e tão obstinado na intenção de se fazer bem compreender e informar que senti o sangue afluir velozmente às orelhas ao ler a dedicatória rs. Foi bondade sua alcunhar-me apreciadora de Beckett. Tenho, porém, uma grande vontade de ser intima da obra dele e ler seus textos sem perder-me tanto.
Quanto às suas impressões sobre os filmes, tão bem aparadas, com certeza servirão de apoio para mim, já que, perdendo a mostra (uma soberba iniciativa), poderei ao menos assisti-los pelo blog. Meus agradecimentos. E cumprimentos. O texto está perfeito.

Marcel Koury disse...

Esplêndido texto! ("Cadência" na escrita é imprescindível.)

Inspiração: é isto o que Beckett, despudoradamente, faz-nos ter.

Miradouro Cinematográfico disse...

Gorette:

Foi-me impossível não gargalhar (de modo breve, porém sincero) ao ler "o sangue afluir velozmente às orelhas".
Embora lembre bem teres dito que só lestes "Esperando Godot" e embora não recorde seu comentário a respeito da obra (nem negativo, nem positivo), intuitivamente sei que gostasses (ao menos em algum sentido), embora talvez nem vc mesma saiba disso.

Marcel (mas também válido para Gorette e para qualquer pessoa que leia o texto e comentários):

a idéia inicial era fazer um comentário (sequer um texto) brevíssimo e em grande parte objetivo, mas a inspiração bateu e redigi tudo de um folego só; de modo algum acredito em autoria no sentido absoluto do termo, de modo que este texto até pode ser majoritariamente meu, mas não deixa de ser tbm dos três (Gorette, Marcel e Alessandra, que não foram citados gratuitamente), também é do Beckett, também é do pessoal do dissenso e dos espectadores que participaram do debate; em suma, trata-se duma criação coletiva, embora isso não contradiga minha autoria pessoal.

Por fim, agradeço ao fato (inédito, creio), de ter vindo ao blog no dia seguinte a uma postagem e ter encontrado não um, mas dois comentários. Não me interessa nem a quantidade dos comentários nem a extensão desses; ambos foram bastante significativos (por motivos em parte já implicitamente explicitados acima).

Despeço-me ao som do "Return to forever".

Miradouro Cinematográfico disse...

Gorette:

Outra coisa, não foi bondade minha apresentá-la (e considerá-la) apreciadora de Beckett, pois eu assim tbm me considero, mesmo sem ter lido nada dele (e antes mesmo de ter assistido tais adaptações), ou seja, fui um admirador a priori.

Gorette Silva disse...

é bem verdade que os textos tem muito mais donos do que se pode supor... e é muito relevante fazer notar, lembrar, isto. E muito honesto também.
Complementando, eu li Esperando Godot e iniciei O inominável mas, ao saber q se tratava do ultimo romance da trilogia, junto com Malone Morre e Molloy e sendo a leitura tão difícil, a exigir um verdadeiro abandono àquela sequencia desvairada de pensamentos, achei q pra ajudar a mim mesma deveria ler na sequencia correta.
Assim como em Lispector, em beckett cada frase é um afogamento, cada passagem contém mil desdobramentos. É de se segurar na cadeira pra não cair. Beckett ou Onde os fracos não tem vez =D

Alessandra Alencar disse...

Agradecida Alberto!

floyd-hunter disse...

Li a trilogia citada pela Gorette silva(saudades). Sempre fui um apaixonado por textos obscuros o que tornou as minhas impressões complexas.Rsrs
Soberbo o texto redigido pelo criador do blog, fiquei excitado( do ponto de vista da curiosidade) pelas descrições das cenas, da ambientação e do roteiro. Deve ser uma tarefa difícil transformar as pelavras de Beckett em imagens. Mas parece-me que conseguiram realizar tal feito! Imagino o estrago(sentido psicológico) que ficou a cabeça do público.

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Miradouro Cinematográfico
Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)
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