segunda-feira, 24 de maio de 2010

PostHeaderIcon A perfeita fruição do tempo em Polícia, Adjetivo





*Pedro Sobral


O que é, por conseguinte, o tempo?
Se ninguém me perguntar eu o sei;
se eu quiser explicá-lo a quem me fizer essa
pergunta, já não saberei dizê-lo. (Santo Agostinho)


Curiosa a abordagem do tempo na narrativa do filme Polícia, Adjetivo (Politist, Adjectiv, Romênia, 2009, 115 minutos), de Corneliu Porumboiu. Na película nos é mostrado o dia a dia de um jovem policial romeno – o ator Dragos Bucur, completamente integrado à personagem – em sua benevolente investigação sobre a vida de um garoto que fuma haxixe e compartilha a droga com dois colegas de colégio.
Porumboiu, que já havia filmado À Leste de Bucareste (2006), mostra uma Romênia por um lado sequiosa de adentrar nas práticas da Europa contemporânea, por outro, ainda presa ao ranço de mais de duas décadas do regime comunista (sinônimo de atraso) personificado na figura do ditador Nicolae Ceausescu.
Para o jovem policial, o fato de um garoto fumar haxixe de quando em vez é considerado um delito de menor – talvez, minúsculo – potencial ofensivo. Intui, de forma humanista e depois de ter viajado na lua-de-mel à Itália, que as leis romenas mudarão em relação ao consumo de entorpecentes e se tornarão mais brandas – uma forma do país oriental ser identificado junto aos outros europeus. Como trabalhador livre, mas recém-egresso de uma tradição totalitária que perpassava conditio sine quae non todos os governos da Europa do Leste, o policial se submete a escrever relatórios pormenorizados acerca da rotina do garoto fumante. Sua investigação vai ao ponto de cronometrar os minutos gastos pelo adolescente em suas baforadas. Tudo isso, claro, é posto nos relatórios, servindo-se de uma linguagem pretensamente técnica, que soa, ao menos para um brasileiro, mais como literatura fantástica, devido ao nonsense da situação.
Polícia, Adjetivo é um filme de grandes qualidades: mostra-nos um retrato da vida diária de um país fora dos noticiários internacionais, por seu papel reduzido na cultura e comércio mundial, e talvez também por ter sido integrante da “Cortina de Ferro”; há a atuação segura de Dragos Bucur e o desfecho – sem concessões – da obra, no momento em que o delegado ao qual o jovem policial é subordinado se serve de um dicionário (valendo-se de sua autoridade em grande medida) para enterrar as pretensões do agente da lei de deixar o jovem drogado persistir, incólume, na sua vida de fumante e proto-traficante. O transcorrer lento do tempo, as demoradas tomadas em que se focaliza o protagonista por minutos a fio são, entretanto, os aspectos mais intrigantes do filme.
Depois de um dia de trabalho o policial volta para casa, cumprimenta a esposa e segue para a cozinha: esquenta a sopa, põe o caldo no prato, corta em pedaços o pão com as mãos, joga-os tal qual iscas na sopa quente e começa a comer. Na sala do modesto apartamento, a esposa vê um vídeo na internet – provavelmente no You Tube – de uma cantora local. O vídeo termina (na primeira exibição vinham legendas em português, era uma música romântica), a esposa vê uma vez mais. Termina a segunda exibição, ela põe novamente. Enquanto isso, na copa, a câmera estática filma o perfil do policial que segue sorvendo o caldo quente, fazendo o ruído característico de quem ou não recebeu a educação adequada para se portar à mesa, ou simplesmente está demais à vontade – e daí afrouxa as regras (nessa cena fiquei imaginando o quê viria a seguir: ele enfiará o dedo mínimo no ouvido para tirar cera?); a esposa continua ouvindo a mesma canção no computador. O policial, depois de terminar a sopa, pega outro prato. Come lentamente. Há, ademais, os takes em que o policial espia o adolescente se drogando por minutos. Ou quando escreve seu relatório burocrático, repleto de minúcias sobre o nada que observou.
A idéia do físico Einstein acerca da quadrimensionalidade do universo – as três mais óbvias acrescidas à do tempo, nunca fez tanto sentido quanto no filme Polícia, Adjetivo. A possibilidade de espiar os momentos romanescos das pessoas comuns foram registrados de modo hiper-realista na película de Porumboiu. Um deleite para os adeptos do voyeurismo e fãs de Big Brother em geral.


*Pedro Sobral é licenciado em história pela Universidade Católica de Pernambuco, bacharelando em ciências sociais pela UFPE, professor da rede pública e particular e cinéfilo nas horas vagas.
domingo, 16 de maio de 2010

PostHeaderIcon Retorno das sessões de arte no cinema São Luiz (Recife)

Visão interna do cinema São Luiz (Recife)


Seguindo meu costume de folhear despretensiosamente a página de cultura dos jornais no fim de semana, me deparei com uma ótima notícia: o cinema São Luiz (Recife), recentemente reaberto, voltará a exibir sessões de arte; nas sextas-feiras às 20h e aos sábados às 10h (o horário do sábado é ingrato, sobretudo para os boêmios, mas o horário de sexta casa bem cinema – cerveja =)

O primeiro filme desta retomada será exibido excepcionalmente neste domingo; trata-se da comédia “Meu Tio” (França, 1958), de Jacque Tati. Na pauta para os próximos fins de semana estão “Os incompreendidos” (França, 1959), de François Truffaut (imperdível), “Quanto mais quente melhor” (EUA, 1959), de Bily Wilder, “Morte em Veneza” (Itália, 1971), de Luchino Visconti, “A doce vida” (Itália, 1960), de Federico Fellini (também imperdível), obras (não especificadas) de Ingmar Bergman (podê-las ver no cinema será um êxtase!) e clássicos do cinema nacional, como “O homem do Sputnik” (Brasil, 1959), de Carlos Manga.


Abaixo segue o link da notícia completa:

www.diariodepernambuco.com.br/2010/05/16/viver4_0.asp


Alberto Bezerra de Abreu

sábado, 8 de maio de 2010

PostHeaderIcon Cine PE 2010 sábado: noite de Tony Ramos, Paulo José e Jorge Amado

Áurea

Geral

Homem-bomba

Quincas Berro d'água


A última noite da mostra competitiva do Cine Pe propiciou fortes emoções mesmo quando filmes não estavam sendo exibidos; trata-se da homenagem prestada ao ator Tony Ramos (aplaudido de pé), o qual se estendeu em seu discurso, mas com um carisma tal que não gerou incômodo. Durante a apresentação do longa “Quincas Berro d’Água”, Paulo José (seu ator principal, recentemente operado para amenizar os sintomas do mal de Parkinson) discursou brevemente e foi também aplaudido de pé. Dois momentos emocionantes, até porque o aplauso de pé é para poucos e em ambos os casos foi deveras merecido.
A exibição foi iniciada com “Áurea” (Zeca Ferreira, RJ), história de uma cantora da noite carioca que, mesmo com muitos anos de “estrada”, continua voltando para casa de kombi (apesar do grande talento, canta sempre para público reduzido e vive modestamente). Filme interessante, sobretudo quando mostra a cantora em ação ou ouvindo música em seu modesto apartamento, mas que, em minha opinião, não merecia o prêmio de melhor curta digital.
O curta seguinte foi “Família Vidal” (Diego Benevides, PB), que mostra o cotidiano de uma família circense residente no interior da Paraíba. As condições modestas do circo me chamaram muito atenção, bem como os depoimentos de uma de suas integrantes, sobre as reclamações do público (que se queixa do valor de 1$ cobrado – este sendo diminuído para 50 centavos em alguns lugares!) e a vantagem dum circo pequeno em relação a um grande: o clima intimista, que permite ao público, por exemplo, ouvir a piada do palhaço, o que não aconteceria num circo maior, ao menos para os que sentam ao fundo (lembrei-me do show do Iron Maiden em Recife ano passado onde aqueles que, como eu, não foram para área vip, tiveram de assistir ao show pelo telão, um ótimo exemplo de que coisas demasiado grandiosas acabam perdendo a magia). Heresias a parte, gostei mais deste curta que do famoso documentário “Os palhaços” (Fellini”); para mim, o mestre italiano acabou se perdendo nessa obra; a simplicidade do curta paraibano, por sua vez, me cativou levemente; a pretensão de sofisticação do longa de Fellini me cansou; só critico no curta a ausência de cenas dos artistas em ação (mas talvez isso tenha sido melhor...)
O terceiro curta foi “Geral” (Anna Azevedo, RJ), que mostra o comportamento de torcedores na extinta geral do Maracanã (as filmagens foram realizadas em 2005, quando tal espaço ainda existia); curiosamente, o que chamam de geral no estádio carioca é a parte de baixo da arquibancada, próxima do fosso, que dá ao torcedor uma visão no mesmo nível do campo (uma visão ruim, já que a visão melhor é a panorâmica, distante a acima do nível do campo), enquanto aqui Recife a geral é o chamado anel superior, no qual torcedores ficam expostos a sol e chuva. Realizado durante jogos do Flamengo e do Fluminense, o documentário mostra o fanatismo do torcedores, retratando alguns mais extravagantes, como um com máscara do pânico, outro vestido de padre, bem como aqueles mais exaltados. Intercalava tais momentos com cenas do estádio vazio e “causos” contados por alguns torcedores; filme interessante, contagiante, foi ovacionado pelo público mas, em que pese minha paixão pelo futebol, não ficou entre meus favoritos. Achei-o descritivo demais e gostaria de ver mais cenas do jogos, afinal fica um tanto sem sentido mostrar reações do público sem mostrar o que eles assistem.
A exibição de curtas prosseguiu com o estranho “Nego fugido” (Cláudio Marques; Marília Hughes Guerreiro, BA); mostrando a realização de uma rústica festa popular por parte de afro-descendentes e o estranhamento que ela causou em dois forasteiros que a foram observar como um laboratório para teatro, o filme cresce a partir do momento em que o rapaz se integra a festa, pintando seu rosto de preto (ele era branco) e sendo humilhado (tudo encenação, mas que assustou a garota que o acompanhava); a violência (verbal apenas) da interpretação do jagunço, bem como a troca de papéis (o negro como algoz, o branco como vítima) me soaram interessantes, mas o filme não deixa de causar certo estranhamento (mais pela forma do que por esta inversão de papéis), ou seja, mais um estranhamento estético do que social (e acredito não ter sido este o objetivo). Mas talvez eu o tenha interpretado de forma totalmente equivocada...
O curta seguinte foi “Um médico rural” (Cláudio G. Fernandes, PE); inspirado num conto de Kafka, o filme mostra um médico indo atender um paciente em local distante e simultaneamente, sua criada ser atacada por um homem; com pitadas de suspense, bela fotografia e trilha sonora envolvente, o filme deixa uma desagradável sensação de estar faltando algo. Acredito ser mais uma característica presente originalmente no conto (não sei o título mas sei que não li, pois não conheço contos do autor mas somente suas obras mais populares), e menos uma opção estilística do diretor. Em termos estéticos o filme é ótimo, mas em termos de enredo não agradou (inclusive a mim). Adaptar Kafka é um desafio e tanto, como provou a versão de “O processo” (1993, de David Jones); seu filme, apesar de muito fiel à obra homônima do escritor checo em que foi inspirada, passa a sensação de faltar algo, (como quando um músico executa perfeitamente uma música, mas sem alma). A célebre versão de Orson Welles para tal obra eu não assisti AINDA.
O último curta da XIV edição do Cine PE foi “Homem-bomba” (Tarcísio Lara Puiati, RJ), que mostra dois jovens garotos ajudantes do tráfico de drogas num morro carioca. Os diálogos entre eles são muito bem construídos, possuindo humor e profundidade simultaneamente, sem soar forçado (mostrar crianças numa quase divagação poderia ser arriscado em termos de verossimilhança), pois os garotos atuam com uma naturalidade notável. A cena de despedida é tocante e encerra a obra de maneira bastante apropriada. Os aplausos foram enfáticos.
O único longa da noite não participava da mostra competitiva: “Quincas Berro d’Água” (Sérgio Machado, RJ) é baseado na obra quase homônima (“A morte de Quincas Berro d’água”) de Jorge Amado. Conta a história do recentemente falecido Quincas que é levado por seus companheiros de farra para a derradeira comemoração (justamente no dia do seu aniversário!). Numa das célebres frases do longa, o defunto diz (sim, ele fala com espectador, mediante pensamento): “minha noite de defunto é mais animada que a de muito vivo”. Outra frase célebre é proferida por um de seus “comparsas” durante seu velório, para justificar a recitação duma poesia de qualidade duvidosa: “poesia ruim é melhor que bosta nenhuma”. Bastante divertido, o filme surpreendeu-me principalmente em sua seqüência inicial (que é também a final), a qual mostra o corpo de Quincas no mar, durante a noite, numa cena esteticamente belíssima que remete antes a um filme artístico do que a um filme mais acessível. As atuações são bastante convincentes e foi com grande satisfação que contemplei O desempenho de Paulo José (Quincas), o qual, apesar da doença, saiu-se muito bem em seu papel (convém salientar que ele já interpretara o personagem principal da obra “O triste fim de Policarpo Quaresma” do escritor Lima Barreto). “Quincas Berro d’água” me remeteu a três coisas: ao livro “Memórias póstumas da Brás Cubas” (Machado de Assis), pela narrativa de um defunto; ao filme “Um morto muito louco” e a um episódio do Chapolin Colorado (!) em que defuntos eram transportados de maneira a parecerem vivos.
Acredito que apesar da qualidade de alguns curtas como “Homem-bomba”, o grande destaque da noite foi o divertidíssimo longa “Quincas Berro d’água”, fechando com chave de ouro a última noite do Cine PE no Teatro Guararapes (no domingo se seu a premiação no Cinema São Luiz, com direito a exibição – fora de competição – do documentário “Continuação” de Rodrigo Pinto, sobre o músico pernambucano Lenine).

Alberto Bezerra de Abreu, maio 2010
quinta-feira, 6 de maio de 2010

PostHeaderIcon Cine PE 2010sexta-feira: criatividade, humor e filmes intrigantes

Zé(s)
Amigos bizarros do Ricardinho

Quando a chuva chegar

Não se pode viver sem amor




Minha terceira noite no Cine PE 2010 foi surpreendentemente positiva. A homenageada da noite foi a atriz Júlia Lemmertz (sua fala aumentou minha curiosidade acerca da obra de Raduan Nassar, autor de “Lavoura Arcaica”, transformado em filme homônimo, o qual está entre meus favoritos de todos os tempos e de “Um copo de cólera”, também transformado em filme, o qual ainda não assisti). Mais uma vez, os representantes quando iam ao palco apresentar seus filmes faziam menção ao tamanho agigantado do público (o qual além do tamanho é deveras participativo, não raro sendo bastante generoso nos aplausos); duas falas me chamaram muito atenção: numa delas, alguém afirmara ainda ter esperança no país ao ver o público (formado sobretudo por jovens, o futuro da nação), vibrando com os filmes de forma tão intensa quanto se costuma vibrar nos estádios de futebol (não é a toa que noutro dia o evento foi chamado de o Maracanã e a Bombonera – vide resenhas anteriores sobre o evento – do cinema nacional); a segunda fala tratava da falta de divulgação dos curtas-metragens; não se posicionando sobre a pertinência ou não da lei que obriga a exibição de curtas antes da exibição de longas (acho muito pertinente, pois há curtas excelentes, ao passo que os trailers geralmente exibidos são horríveis), a pessoa que discursava chamou atenção para o fato de que os filmes são feitos com dinheiro público e para ninguém assistir. Colocação deveras lúcida acerca de um problema sério e muito pouco debatido.
Antes do início da mostra competitiva, tivemos a exibição do vencedor do concurso Celucine (filmes de até 3 minutos realizados em celular!) do ano passado. Eu tivera a oportunidade de assistir os finalistas justamente na única noite do Cine PE na qual compareci em 2009 e meu favorito foi o vencedor. Trata-se de do filme: “A palavra mais difícil” de Bruna Baitelli; a temática do concurso era “de cabeça para baixo” e o filme mostrava um casal, estando a mulher de pé no mesmo ângulo que nós, enquanto o homem estava em pé num ângulo que ficava de cabeça para baixo em relação ao público; curiosamente, o lugar sobre o qual ele pisava não se assemelhava minimamente a um teto, mas era idêntico ao cenário sobre o qual a mulher estava de pé (indicando certamente uma metáfora); ambos realizavam atividades cotidianas, até que ele escrevia a palavra “desculpa” num grande papel e mostrava para ela; na cena seguinte via-mos ambos deitados, agora num mesmo plano, sem estarem um de cabeça para baixo em relação ao outro. Achei-o belíssimo, de uma criatividade e de uma sensibilidade surpreendentes e encantadores (a parte técnica, claro, era simples).
Iniciando a mostra de curta em competição tivemos “Se meu pai fosse de pedra” (Maria Camargo, RJ); filha homenageia pai (artista plástico), autor de esculturas (abstratas) em mármore. O filme, apesar de interessante e bem feito, me pareceu demasiado pessoal (a animação “Eu queria ser um monstro”, exibida terça-feira também fora uma homenagem do realizador a seu pai, mas isso só ficava claro no final da obra, ao passo que, em minha opinião, o curta de Maria Camargo não é tanto a história de um artista que falecera, mas antes da filha deste – a própria – e seu respeito a admiração pelo artista/ pai). De modo que, apesar de o artista aparecer mais que ela (há diversas cenas com depoimentos dele), é sua filha o personagem principal do filme, ao menos foi essa minha impressão. O que achei de mais interessante foi quando a filha mencionou uma frase do pai: “se eu morrer minha obra permanecerá” (ou algo do tipo), ao que ela replicou que antes de artista ele era um homem. Após sua morte, ela afirma que ambos estavam certos. De fato, são perspectivas diferentes, ambas válidas. Só este questionamento já vale o filme, que foi mais aplaudido do que eu esperava.
O curta seguinte foi o intrigante “O plano do cachorro” (Arthur Lins; Ely Marques, PB); na madrugada (de João Pessoa, creio), vemos um corpo humano estendido no meio da rua, ocupando uma das faixas; outro homem arrasta o corpo para que este fique exatamente no meio da rua, entre as duas faixas; após isso, um carro passa ao lado dele, sem tomar conhecimento da situação; depois passa um ônibus (e a câmera passa a focalizar o interior do veiculo que é parado pelo motorista, que desce – para analisar o suporto cadáver, inferimos – e sobe, prosseguindo a viagem). Após tudo isso, o homem vivo urina em cima daquele que supostamente está morto; passa mais um carro sem parar ou sequer diminuir a velocidade e logo depois o homem deitado (que além de imóvel, estava com sangue na cabeça), se levanta e caminha ameaçadoramente em direção ao outro que se põe a correr. A partir daí o filme se torna ainda mais curioso: a perseguição prossegue até o amanhecer, até que ambos chegam a um terreno desabitado e põem-se a brigar (nada de socos ou chutes, apenas os dois rolando no chão, um tentando dominar o outro, num embate deprimente que não dá em nada); a isso tudo assiste um cão o qual, após algum tempo, vai embora. Entenderam a menção ao cachorro do título? Soou-me como uma grande gozação. Gostei, pois me deixou intrigado, mas o público aplaudiu moderadamente.
O próximo curta foi “Zé(s)” (Piu Gomes, RJ), filme que narra o encontro do célebre diretor de teatro Zé Celso e do mecânico Zé Perdiz; na oficina deste (há décadas) se realizavam peças de teatro. Mostram-se falas de ambos, a forma que encontraram de se opor à ditadura através do teatro (o primeiro produzindo, o segundo cedendo o local); é deveras interessante a analogia de Zé Celso entre teatro e oficina mecânica, o corpo do ator sendo moldado duramente, como uma bigorna; não menos interessante é a fala de Zé Perdiz, o qual, perguntado se o local do qual era dono seria uma oficina ou um teatro, respondera: de dia é uma oficina mecânica, a noite, um teatro. Me remeteu diretamente ao saudoso “Garagem” (Recife, próximo ao Circo Maluco Beleza, berço do festival Abril pro Rock), que de dia era uma borracharia e a noite, um bar (o qual foi demolido ano passado, sem que este que vos escreve tenha tido a oportunidade de lá comparecer uma vez sequer). Como a realidade tende a ser dura, a oficina de Zé Perdiz (em Brasília) também foi demolida, para construção de grandes prédios. A ganância parece vencer a poesia, mas a denúncia via curta alimenta alguma esperança.
Em seguida tivemos “Amigos bizarros do Ricardinho” (Augusto Canani, RS), um curta de humor que apesar de engraçado, não conseguiu me arrancar nenhuma gargalhada. Mas não posso negar ser ele muito legal (e de fato foi sem dúvida o mais aplaudido entre os curtas na noite de sexta). É impossível deixar de mencionar alguns dos casos bizarros citados na obra, como a tia que em cinco partos teve cinco vezes objetos cirúrgicos (até mesmo uma luva!) esquecidos dentro de seu corpo; a prima que viu o namorado morrer em seus braços durante uma dança e (meu “causo” favorito): a tartaruga que fugiu de casa e voltou um ano (!) depois. Quando o personagem principal contava tais histórias sempre alguém dizia “que piada sem graça” e ele replicava dizendo ser verdade. Na fala do responsável pelo filme (não era o diretor – que é também o ator principal, o “Ricardinho” do título), afirmou-se que de fato a histórias eram verdadeiras (será possível?).
Para encerrar os curtas da noite, tivemos o peculiar “Quando a chuva chegar” (Jorane de Castro, PA); em linhas gerais, narra a história dum apartamento que desperta nas pessoas um intenso desejo sexual por quem estiver por perto; isso parece ser sabido inclusive por pelos demais residentes do prédio e por quem sequer mora nele. A cena de sexo entre o casal que reside no apartamento “mágico” (abençoado? amaldiçoado?), apesar de nada ter de explícito é muito bonita, sem perder em intensidade (não é demasiado romantizada, expressa tesão, não amor). A peculiaridade da residência me remeteu de imediato a “O anjo Exterminador” de Bunuel (uma ótima referência, diga-se de passagem), de modo a ser este mais um curta realmente interessante.
O único longa da noite foi o surpreendente e intrigante “Não se pode viver sem amor” (Jorge Duran, RJ); o filme até próximo de seu final aparenta ser uma obra convencional (exceto por algumas cenas com o garoto: já no início, ele repete obsessivamente palavras que ocasionam uma violenta ventania; noutro momento, ele chama insistentemente por chuva, e esta de fato vem; antes disso, quando sua mãe estava em perigo, um mendigo pega fogo do nada, supostamente por causa do menino; por fim...). Mas próximo do final as coisas “desandam” (ou melhoram, dependendo da perspectiva) de vez: descobre-se que aquele que imaginávamos ser o pai do garoto na verdade não o é; chega-se a situação surreal de um personagem (Ângelo Antônio) estar em sua casa, com o cadáver de seu pai recentemente falecido (infarto); um assaltante (Cauã Reymond) que já roubara seu dinheiro no táxi que aquele dirigia; mãe e filho pequeno que haviam sidos seus passageiros e foram a sua casa devolver sua carteira, que ficara com o garoto e por fim, a namorada do assaltante, que fora chamada à residência por este; o assaltante apresenta sua vítima como alguém que lhe contratara para fazer um inventário (!); finalizando a absurda situação, o garoto começa a clamar para que o cadáver do idoso acorde e isso nos leva a cena final na qual alguns personagens (até onde entendi) trocam de identidade. No decorrer do filme aparecem algumas cenas de flash-back que dão indícios importantes de como montar o quebra cabeça deste enredo nada convencional. O filme acaba, portanto, sendo um tanto difícil para nós, demasiado acostumados com as facilidades de narrativas lineares, desprovidas de ambigüidades e desafios a inteligência e a sensibilidade do espectador. A obra me surpreendeu e me agradou deveras. E acima de tudo, me deixou intrigado.
Noite de poesia (“A palavra mais difícil”), crítica social (“Zé(s)”), humor (“Amigos bizarros do Ricardinho”) e filmes intrigantes (“O plano do cachorro”, “Não se pode viver sem amor”) a sexta-feira do Cine PE surpreendeu positivamente.

Alberto Bezerra de Abreu, maio 2010
quarta-feira, 5 de maio de 2010

PostHeaderIcon Cine PE 2010 quinta-feira: brega, azul e garotada

Do morro

Circuito interno

Azul

As melhores coisas do mundo




Após perder a exibição de filmes na segunda e na quarta (e ir na terça), retorno ao Cine PE na quinta-feira, noite recheada de curtas pernambucanos e contando com apenas um longa. Desta vez cheguei mais tarde (havia tido aula – justamente de lógica, ah infortúnio!) a tarde, e logo pude perceber que o público seria maior (de fato o Teatro Guararapes lotou e não foram poucas as pessoas quem sentaram nos degraus, como sempre acontece nos dias mais concorridos). Na fileira a minha frente sentaram, a minha esquerda Jomard Muniz de Britto e a minha direita Alexandre Figueirôa, dois importantes nomes da cultura pernambucana e após algum tempo me dei conta que apesar de não os ter cumprimentado (estavam entre amigos), eu não só sabia quem eles eram, mas já tivera a oportunidade de trocar breves palavras com ambos anos atrás.
Não foram poucas as menções feitas na hora das apresentações dos responsáveis por cada um dos filmes exibidos (alguns representados por apenas uma pessoa, outros por equipes, algumas menores, outras maiores) de que tal festival é o maior do país em termos de público, o que é um orgulho para os organizadores e para o público (na verdade, durante todo o festival, boa parte – a maioria, acredito eu – dos realizadores repetiu esta fala).
A noite foi aberta com o curta “Do morro?”(Mykaela Plotkin; Rafael Montenegro, PE), que trás como personagem o músico (!?!) João do morro. Além de cenas deste em ação (cantando) e falando (em entrevistas específicas para o documentário), a obra conta com a participação de figuras destacadas da cena musical recifense (sejam músicos, produtores, etc.). Lula Queiroga e outros defendem a perspectiva de João do moro como cronista da periferia, alguém que escreve sobre o cotidiano da comunidade, sobre o que realmente acontece; China refuta tal visão, definindo-o como um cara que escreve coisas divertidas, e afirmando que essa história de cronista é tentativa de rotulação e enquadramento por parte da classe média; Roger de Renor afirma ser bom que quando João do moro vai tocar na zona sul e cobra caro; houve ainda um cara (do site Recife rock se não me engano) que disse que a classe média atualmente só escuta porcaria (citou Ivete Sangalo, Kalypso, entre outros que não recordo). Tratou-se também da polêmica acerca da música “papa frango” (!), tendo o representante de algum grupo gay dado entrevista considerando a música ofensiva e pedindo sua não vinculação em rádios, não comercialização e não execução em shows. Em que pese a vulgaridade da letra, a idéia de censura me cheira muito mal. Penso que melhor seria investir em conscientização (não sei se vocês pararam para pensar que atualmente o preconceito racial é mais condenado que o sexual, pois é comum vermos musicas pejorativas em relação a homossexuais ou mulheres, mas não em relação a “pretos” ou “amarelos”, por exemplo). Foi interessante notar que apesar do discurso pró-brega do realizador de uns dos filmes (foram dois com esta temática na noite de quinta) e da calorosa aclamação do público a ambos os curtas, não só em seu término, mas mesmo antes de começarem, muitas pessoas aplaudiram as críticas presentes a João do moro apresentadas neste primeiro filme, considerando suas letras grosseiras, ofensivas e mesmo baixas. Pessoalmente achei o filme interessantíssimo (até porque não deixa de apresentar visões contrárias ao “músico”), mas considero sua “música” um lixo. Deveras repetitiva e simples instrumentalmente, vulgar, apelativa e fútil em suas letras. Eis então um questionamento final: de fato, não deixa de ser interessante um músico falar do cotidiano onde vive e, acima de tudo, usando a língua do povo (e ai esta o motivo do sucesso de tal “artista”, penso eu: o uso da linguagem chula tão apreciada pela ralé); porém, não é papel da arte criar o novo ao invés de apenas reproduzir o existente? E se for para descrever o que é, e não o que deveria ser, acredito que a crítica social é muito mais saudável. Assumo aqui uma postura elitista conscientemente, pois para mim o popular não precisa ser vulgar, rasteiro e apelativo (vide Cartola).
O segundo curta foi “Ensaio de cinema” (Allan Ribeiro, RJ), que mostra o cotidiano de dois gays num pequeno apartamento; um costura, o outro cozinha. A certa altura, simulam a gravação de um filme, com menções a “Dança dos vampiros” (Polanski), “Profissão repórter” Antonioni e talvez mais algum que não lembro. A forma como um deles junta as mãos, simulando a lente da câmera e descreve os processos desta (recuo, travelling com lenta aproximação, etc.) mostra uma interessante entrega àquele exercício abstrato. Depois deste ensaio, ambos conversam sobre célebres filmes brasileiros. Dentre os citados, lembro dos seguintes: “Vidas secas”, “Macunaíma”, “A dama do lotação” e algum adaptado da obra de Jorge Amado (não lembro se Dona Flor ou Gabriela). Pessoalmente, me interessei mais por tais menções cinematográficas (que, aliás, podem servir de indicação para futuras resenhas deste blog!) do que propriamente pelo filme.
O filme seguinte foi “A montanha mágica” (Petrus Cariry, CE), belíssimo em ângulos de câmera (que sobe, dá close, visão panorâmica, entre outros recursos); belíssima fotografia, como quando se mostra o parque e em especial a roda gigante durante a aurora; há muitos trechos sem fala, o que torna o filme lento, difícil, cansativo até; as partes faladas esclarecem o sentido da obra: nostalgia, como quando o narrador fala que nada na rua onde morou havia mudado e que ainda consegue sentir (lembrar) do cheiro da gráfica que funcionava ao lado da casa onde morava. A montanha mágica do título é a forma como o personagem principal (que não aparece e narra em off) chamava a roda gigante. Os diversos ângulos de câmera, mostrando diversas partes do parque, sempre vazio (indicando o declínio de sua existência) me remeteu a pelo menos duas idas minha a parque de diversões (parque de rua, fique claro); a primeira eu mal recordo; a segunda se deu num parque montado onde hoje é o estacionamento do Chevrolett Hall (parte da frente, que dá para a Avenida Agamenon Magalhães), muitos anos antes de tal casa de shows ser construída. Não deixou de causar nostalgia em mim também, que assim me identifiquei um pouco com o narrador.
A noite prosseguiu com “Circuito interno” (Júlio Martí, SP), que denuncia a exploração de trabalhadores bolivianos em confecções clandestinas no Brasil. Uma cena recorrente mostra uma TV com tela dividida filmando 4 cômodos simultaneamente (inclusive o banheiro!), demonstrando viverem os trabalhadores em regime de prisão domiciliar (tanto é assim que um dos trabalhadores pede autorização ao patrão para sair e levar um garoto para sem batizado). Há ainda duas cenas (complementares) que merecem destaque: a que um contratante pede uma certa quantidade que camisas (20 mil, se não me engano) para sexta-feira; o dono da fábrica após dizer que não poderia faze-lo em tão pouco tempo, afirma que lhe abrirá uma exceção, mas que o preço será 5$ por peça, ao que o contratante retruca ser muito caro, pois paga caro pelo selo de originalidade (!), e que se fosse por esse preço, procuraria brasileiros, de modo que ameaça denunciar a confecção clandestina. Na cena seguinte vemos os trabalhadores costurando camisas verdes (trata-se justamente da camisa da seleção brasileira, mas não a amarela). Na saída para o batismo, o homem e o menino vêem a camisa a venda na vitrine de uma loja por um preço várias vezes mais caro que o de produção (49$ se não me engano). Nos créditos, o filme esclarece que a exploração aos bolivianos em confecções de roupas brasileiras chega a 15h de trabalho diária destes. Destaco que o filme não poderia ser exibido em momento mais oportuno (as vésperas de uma copa do mundo – chega a ser cômico que no festival tenha sido realizado diariamente um sorteio de camisas da seleção brasileira distribuídas pela TAM, uma das patrocinadoras do evento).
O próximo curta foi “Faço de mim o que quero” (Sérgio Oliveira; Petrônio Lorena, PE), outro sobre o brega, mas não especificamente sobre João do morro, mostrando Kelvis Duran, Conde entre outros, além de muitas pessoas comuns. Ao contrário do primeiro curta, este não se vale de entrevistas, apostando numa descrição de shows, vinculação de músicas na rádio, etc. Considero “Do morro?” superior (mais bem feito, mais crítico e diversificado), mas foi “Faço de mim o que quero” não deixa de ser interessante e foi tão aplaudido quanto seu companheiro de temática. Acredito que nenhum dos dois fez apologia do brega, no sentido de afirmar que seja bom, mas ambos valorizaram tal “música” como uma legítima manifestação cultural da periferia (que inclusive invade a classe média, como o primeiro filme deixou claro). Cabe salientar (a respeito da já mencionada polemica sobre a música “papa frango”, que num dos shows mostrado no primeiro curta aparecem alguns homossexuais dançando alegremente ao som da música que lhes seria pejorativa).
Finalizando os curtas, tivemos “Azul” (Eric Laurence, PE), baseado no conto “Uma doce maneira de ir morrendo” de Luzilá Gonçalves. Contando com temática da espera e da solidão e belíssima fotografia, o filme abusa do uso da cor que lhe dá nome: roupa, toalha da mesa, sapatos, parede da casa, fita no cabelo, papel da carta, tudo é azul; a forma como se utiliza a iluminação faz com que tudo na casa pareça ser azul; o horizonte retratado lindamente nas cenas exteriores da casa é de um azul que parece irá nos engolir; até mesmo a parte inferior/ central da chama das velas é azul (lembrando a chama de um fogão). O cágado que passeia pela casa em diversos momentos constitui um sutil elemento cômico. O trecho final da sinopse, ao afirmar a “necessidade de criar fantasias para suportar a solidão” dá margem para o questionamento de se a visita do filho realmente aconteceu (ao menos eu penso assim) e o fato de o filme não seguir uma linearidade cronológica torna seu enredo mais interessante e ocasiona a necessidade de que o assistamos novamente para compreendê-lo melhor. Belíssimo na forma, desafiador no conteúdo.
O único longa da noite certamente foi um dos filmes mais esperados de todo o festival; “As melhores coisas do mundo” (Laís Bodanzky, SP). A cineasta, ao apresentar sua obra, esclareceu ser ela seu quarto longa-metragem, tendo todos eles passado pelo Cine PE (entre eles o premiado “Bicho de sete cabeças” em 2001 ). “As melhores coisas do mundo” é um filme convencional, comercial e nem por isso ruim; é muito bem feito e apesar dos clichês, funciona. Conta a história de um adolescente, mostrando as dificuldades e os prazeres pelos quais ele passa, como a separação dos pais, a insegurança acerca de seus sentimentos, a primeira relação sexual... Merece destaque a temática do preconceito, mostrando que a distância entre vítima e algoz por vezes é ínfima ou mesmo inexistente. O filme estreará em breve no circuito comercial e merecerá uma resenha a parte.
Meus favoritos da noite foram o grande vencedor da X1V edição do Cine PE “As melhores coisas do mundo” e o lindo e subestimado “Azul” (se não me engano não ganhou nenhum prêmio).

Alberto Bezerra de Abreu, abril/maio de 2010
terça-feira, 4 de maio de 2010

PostHeaderIcon Cine PE 2010 - terça-feira: animações e engajamento periférico

Eu queria ser um monstro

O divino de repente

O homem mau dorme bem


O primeiro dia de exibição da mostra competitiva na edição de 2010 do Cine PE já trazia dois filmes bastante aguardados: o curta pernambucano “Recife frio” de Kleber Mendonça Filho (ex-colaborador do Jornal do Commercio – que me interessava justamente por ser a oportunidade de ver um teórico colocar seus conhecimentos em prática) e o longa “O bem amado” de Guel Arraes (fora de competição). Infelizmente não pude comparecer neste dia e fiz minha estréia no evento na noite de terça feira. Aparentemente o público não seria muito grande, mas a medida que a hora passava (e o evento, previsto para iniciar às 18:30 começou após as 19h) chegavam mais e mais pessoas, de modo que durante a exibição dos curtas o Teatro Guararapes encheu (mas não lotou, havendo ainda lugares vazios nas primeiras filas).
A noite começou com o curta “Corpo Urb” (Mariane Bigio, PE); achei deveras interessante a forma como se trabalhou com o som, alternando sons do ambiente (passos dos transeuntes e barulho emitido pelo semáforo diante duma faixa de pedestre, já na abertura do filme), música (belíssimo improviso em violoncelo) e o silêncio (que não poderia faltar num filme que se pretende sofisticado). No entanto não consegui captar a idéia da obra, mesmo ele se baseando num poema que é recitado no decorrer da exibição. Demasiada abstrata, mostrava uma garota deitada numa cama (no início) e numa banheira (no final) e no meio, digitando num computador velho e desligado na calçada de uma das pontes do centro do Recife (que acredito ser a Duarte Coelho). No final da exibição, alguém da platéia disse de maneira irônica (porém sem agressividade ou desdém): “dá pra passar de novo?”. Há filmes que não entendo e gosto, mas confesso que este não foi um deles e o público o aplaudiu burocraticamente. A crítica também deu de ombros, pois li uma cobertura que dizia que o filme “não disse a que veio”.
O segundo filme da noite foi “Eu queria ser um monstro” (Marão, RJ), animação singela, mas deveras expressiva que mostra a convivência familiar de um garoto com bronquite e seus pais; destaque para as cenas que mostram como o garoto tentava enganar a mãe, fingindo tomar banho. O filme teve problemas com o som e o público começou a assoviar e constatando o não surtir efeito de tal atitude, começou a bater palmas, até que a exibição foi interrompida, sob aplausos. Após alguns minutos recomeçou (do começo) a exibição, dessa vez sem maiores problemas. O final e a dedicatória arrancaram um “ôôô” meigo da platéia e deixaram marejados os olhos deste que vos escreve. Se minha percepção não falhou, foi o mais aplaudido da noite.
O terceiro curta foi “O divino, de repente” (Fábio Yamagi, SP), o qual mostrava um repentista (se não me engano um goiano, residente em São Paulo) que canta repentes cômicos (não raro numa velocidade que prejudica e muito sua inteligibilidade), mas que não são de sua autoria (são cantorias consagradas do senso comum, diz-se nos créditos finais). No entanto, o personagem é uma verdadeira figura que cativou o público (tendo recebido também muitos aplausos). O filme mistura a filmagem comum do personagem com momentos em que ele aparece em animação, tornando a obra mais dinâmica. O trocadilho do título é muito legal, mas apesar de divertida, a obra para mim foi apenas mediana.
O último curta da noite foi “Senhoras” (Adriana Vasconcelos, DF), inspirado num poema de Fernando Pessoa, mostra duas senhoras (mãe e filha), vivendo num pequeno apartamento, até que um estúpido acidente doméstico sela o destino de ambas. Nesta história bastante singela o destaque vai para a belíssima atuação da mãe (já bastante idosa), deitada na cama, sofrendo por não ter mais quem cuide dela.
O primeiro longa da noite foi “Cinema de guerrilha” (Evaldo Mocarzel, SP), documentário que mostra o surgimento de cineastas na periferia de São Paulo. O início foi um tanto maçante: entrevistas com os realizadores cinematográficos da periferia de SP dentro de uma Kombi/ Van. Falas interessantes, mas em alguns momentos ingênuas (por exemplo, sobre a legitimidade de alguém da classe média filmar a periferia; seria necessário não se fazer passar por um deles, mas deixar claro ser uma vista de fora, ao passo que quando são eles mesmos, os moradores da comunidade quem produzem filmes, a legitimidade seria maior). O filme melhora quando mostra a oficina (os realizadores mais experientes ensinando outros jovens a como manejar a câmera, elaborar roteiros, etc.); volta então as entrevistas, agora mais interessantes, num ritmo mais palatável, merecendo destaque as referências a “O cão andaluz” (de Bunuel), Platão (o mito da caverna) em “O mundo de Sofia” e Tarkovski. Há pelo menos dois momentos em que a arte é apresentada como forma de salvação (da igreja e da depressão). Numa cena externa ocorre o roubo da câmera, o que levanta a seguinte questão: tal atitude teve caráter financeiro ou ideológico? (seria necessário pedir autorização aos traficantes, que teriam roubado a câmera por receio em relação ao que estava sendo mostrado? Seria correto negociar com eles?). O roteiro para este filme a ser desenvolvido na oficina trazia a idéia (ingênua, porém interessante) de jovens quebrando vidraças com pedras embrulhadas em papeis com poemas neles escritos para sensibilizar a classe média. Há ainda a recitação de alguns poemas (os quais achei realmente interessantes) de um dos integrantes do grupo, entre os quais este: “Se o que nos resta é o resto só nos resta rejeitar”. Em suma, um filme irregular, por vezes ingênuo, que não cativou o público, mas do qual gostei. Faz pensar, levanta questões pertinentes (a inicial sendo justamente a da democratização da possibilidade de realização de filmes, mediante o uso de equipamento digital; produzir cinema deixa se der exclusividade da classe média) e incomoda, acredito eu.
Para fechar a noite, o longa “O homem mau dorme bem” (Geraldo Moraes, DF), que me deixou bastante intrigado por conta de seu título, o qual me remeteu diretamente a obra homônima (sem o artigo "o" no início) realizada por Kurosawa em 1960. No entanto, não percebi nenhuma referência – seja direta, seja indireta – a tal obra. Apesar de não ser complexo, o filme de Moraes é difícil de ser sintetizado; o aspecto central é o reencontro de um casal após um mal entendido que os separou: se conheceram num circo e sendo ele palhaço e ela lavadeira, não lhes foi permitido o casório por parte do avô desta, que deu 2 anos ao pretendente para lhe arrumar um dote. O final não me pareceu óbvio nem piegas, mas demasiado convencional. Destaco a variedade de cenários (centro comercial de uma cidade grande, posto de gasolina numa estrada rumo ao interior, cidade do interior e circo nela instalado – com direito a algumas cenas de acrobacias e palhaçadas –, rio onde trabalhadores procuram pedras preciosas, fazenda na qual foi achado ouro), a coesão do roteiro e fluidez do filme (que não se perde ou se torna maçante) e, no entanto afirmo que a obra para mim não se destacou, sendo apenas uma entre muitas.
Em suma, numa noite de altos e baixos meus destaques vão para o longa crítico “Cinema de guerrilha” e para o belo, singelo e tocante (no final) curta “Eu queria ser um monstro”. E o festival estava apenas começando para mim...

Alberto Bezerra de Abreu, 30/04/2010
domingo, 2 de maio de 2010

PostHeaderIcon Cine PE completa 14 e 10 anos simultaneamente

O invasor

Durval discos

Dossiê Re Bordosa

Paradoxo da espera de um ônibus

Até o sol raia

Silêncio e sombras


Inicio este texto já com um pedido de desculpa: não consegui achar muitas informações sobre a trajetória do festival; resta-me, portanto, dizer o pouco que sei. Nascido em 1997, com a então nomenclatura de “Festival de cinema do Recife”, o evento ocorreu no tradicionalíssimo cinema São Luiz onde se deu a estréia do longa metragem pernambucano “Baile Perfumado” (Lírio Ferreira); no ano seguinte ocorreu no festival a pré-estréia do indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro “Central do Brasil” (Walter Salles). Minha estréia no evento se deu no ano 2000, levado por minha professora de literatura; foi minha descoberta dos curtas-metragem, bem como da qualidade do cinema brasileiro que não aquele divulgado na TV por conta das (bastantes questionáveis) indicações a melhor filme estrangeiro no Oscar (nessa época, até onde lembro, o cinema brasileiro estava em baixa e não havia grandes sucessos da Globo Filmes desvinculados de tais indicações). Infelizmente não consegui lembrar (nem encontrar na internet) nenhum título exibido nesta minha estréia (que se deu na sexta, dia 31 de maço de 2000).
No ano seguinte, em que “Bicho de sete cabeças” de Laís Bodanzki conquistou boa parte dos prêmios principais me ausentei, comparecendo novamente em 2002, ano em que tive oportunidade de assistir ao aclamado “O Invasor” (SP), de Beto Brant, que conta com o titã Paulo Miklos no papel principal, filme este que hoje tenho em DVD e pretendo resenhar para este blog. Retornei em 2003 e tive a oportunidade de assistir o divertidíssimo longa “Durval discos” de Anna Muylaert (outro que hoje possuo em DVD e pretendo resenhar). Neste mesmo ano foi exibido o documentário (curta) “A composição do Vazio” (PE) de Marcos Enrique Lopes, sobre o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho (por quem eu viria a me interessar a partir de 2006, ao ingressar no curso de filosofia da UFPE, sendo que não tive ainda a oportunidade de assistir ao curta, que foi novamente exibido na Bienal do Livro de Pernambuco de 2007).De 2004 a 2007 me ausentei do festival, apesar de residir bem perto do Teatro Guararapes e de não ter o menor problema em ir sozinho (na verdade, na maior partes das vezes fui só). No ano de 2005 o grande vencedor foi o documentário “Do Luto à Luta” de Evaldo Mocarzel. Em 2006 merecem destaque os premiados e pernambucanos “Árido Movie”, longa de Lírio Ferreira (o qual ainda não assisti, mas pretendo faze-lo em breve) e o curta “Eletrodoméstica” de Kleber Mendonça Filho, que assisti noutra oportunidade não gostei. 2007 foi marcado pelo domínio dos longas de São Paulo “Cão sem Dono”, de Beto Brant e Renato Ciasca, “Os 12 trabalhos” de Ricardo Elias, “O mundo em duas voltas” de David Schürmann e “Não por acaso” de Philippe Barcinski.
Após quatro anos de ausência, meu retorno se deu em 2008, no sábado (eu estava estudando a noite); dois curtas ficaram em minha cabeça: a animação “Dossiê Rê Bordosa” (SP) de César Cabral, e “Os Filmes que Não Fiz” (MG), de Gilberto Scarpa, ambos hilários. Outros curtas que merecem destaque são a animação divertidíssima e deveras inteligente “O Paradoxo da Parada de Ônibus” (RJ), de Christian Caselli, que eu veria posteriormente no You Tube (viva a democratização!), a também animação “Até o Sol Raia” (PE) de Fernando Jorge e Leanndro Amorim, (a qual assisti somente este ano, num dos dias da inauguração do cinema São Luiz, e simplesmente adorei) e o documentário longa metragem “Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife” (PE) de Leo Falcão, inspirado na obra homônima de Gilberto Freyre (o qual ainda não assisti).
Em 2009, antes mesmo de adentrar ao cine-teatro, aconteceu algo interessante: recebi um folder da Revista “Zé Pereira” (http://www.revistazepereira.com.br/). Antes da competição de curtas, tivemos a exibição da mostra Cellucine, com curtas de até 3 minutos realizados em celular e a temática “De Cabeça Para Baixo” (e não é que produziram coisas boas?); meu favorito (que se sagraria o vencedor) foi “A palavra mais difícil” de Bruna Baitelli, belíssimo. Entre os curtas em competição no festival (infelizmente não lembro de todos), destaco o também belo “Pelo Ouvido” (MA), de Joaquim Haickel, o pertinentíssimo documentário (até onde sei, não existem outros registros sobre o célebre evento musical pernambucano) ”Abril Pró-Rock – Fora do eixo” (PE), de Everson Teixeira, Ricardo Almoêdo e Julio Neto, e (quase esqueço, o que seria uma falta gravíssima, já que foi um dos filmes mais belos que já assisti) a sombria e encantadora animação “Silêncio e Sombras” (PR) de Murilo Hauser, livre adaptação do poema “Erlköning” de Goethe.
Finalmente, este ano de 2010 foi um marco para mim em diversos aspectos, a começar pelos 10 anos desde meu primeiro contato efetivo com o festival (também no ano 2000 seria minha estréia no Abril pro Rock, mas ao contrário do que aconteceu com o festival de cinema, fui ao evento musical religiosamente todos os anos, alguns deles só um dia, outros dois ou três); foi também neste ano de 2010 que finalmente compareci em mais de uma noite (em quatro, na verdade, terça, quina, sexta e sábado, todas a serem devidamente resenhadas por mim em postagens posteriores); foi o ano no qual finalmente adquiri uma camisa do evento, ainda que não estivesse lá muito bonita... E, claro, foi o primeiro ano em que escrevi sobre o evento. Entre os curtas, destaco a animação divertida (e tocante, em seu final) “Eu queria ser um monstro” (RJ), de Marão e o esteticamente impecável “Azul” (PE), de Eric Laurence. Entre os longas o destaque vai para o acessível “As melhores coisas do mundo” (SP), de Laís Bodanzky e o não convencional “Não se pode viver sem amor” (RJ), de Jorge Duran (ambos concorrendo a prêmios), mas “Quincas Berro d’Água” (RJ) de Sérgio Machado, inspirado na obra de Jorge Amado, tendo como protagonista Paulo José (que estava no festival e foi aplaudido de pé, assim como o homenageado da noite de sábado, Tony Ramos) foi deveras divertido e acredito que o mesmo se possa dizer de “O bem amado” (RJ), de Guel Arraes, exibido na segunda (ambos fora de competição). Aliás, como afirmou um dos jornais que li, a edição 2010 do Cine PE estreitou laços com o cinema comercial, não só pela exibição do filme de Guel Arraes e pela homenagem a Tony Ramos, mas também pela homenagem a Globos Filmes (fazer o que...). Mas isso sem abrir mão da seleção/ exibição de filmes pouco convencionais (um exemplo é o intrigante “O plano do cachorro” (PB), de Arthur Lins e Ely Marques).
Considerado o festival de cinema brasileiro com maior público (2500 lugares com direito a espectadores se acomodando nos degraus), o Cine PE é tido também como um dos mais importantes, juntamente com os festivais de Brasília e Gramado. Em minhas leituras constatei a recorrente crítica a obscuridade (ou mesmo falta) de critérios na seleção dos filmes a serem exibidos, mas acredito que esta seja uma marca do festival: a diversidade. Parece-me (não conheço outros eventos ainda), que cada festival tem seu próprio perfil, sendo a variedade uma das características marcantes do Cine PE. O público, além de imenso e assíduo é deveras participativo, a ponto de, nesta décima quarta edição, realizadores terem atribuído ao evento a alcunha não só de Maracanã do dos festivais de cinema brasileiro (se referindo ao tamanho hiperbólico da platéia) mas também de Bomboneira, um verdadeiro caldeirão (referência ao estádio de futebol do clube mais popular da Argentina, o Boca Juniors), expressando a paixão exacerbada dos espectadores. Que venham os quinze anos e convido todos a lá estarem!

Alberto Bezerra de Abreu, 02/05/2010

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Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)
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