A última tentação de Cristo ou como uma ode é recebida como ofensa
Meu nada recente repúdio ao cristianismo institucionalizado (anterior inclusive às leituras de Nietzsche) fez-me ter outrora algumas atitudes um tanto abusadas, como quando, no Ensino Médio, pintei uma cruz de ponta cabeça em minha farda, pondo os números 6,6,6, respectivamente ao lado/ em baixo das três pontas do símbolo (mas como a camisa era azul escura e a “arte” tomava o preto como efetivador), o desenho ficou discreto. Já a insistência em comer carne durante a semana santa durou mais tempo (confesso que neste ano, tendo demasiadas coisas mais urgentes com as quais me preocupar, nem pensei nisso, apesar de que de hoje acabei comendo pirão com guisado de boi). No entanto, minha verve herética se manifestou nesta semana santa no plano cinematográfico: resolvi assistir novamente “A última tentação de Cristo” de Martin Scorsese. Conheci tal obra através de um amigo que a trouxe, há alguns anos (uns três acredito eu, talvez mais). Lembro-me de ter apreciado a obra, mas tendo ficado com uma pulga atrás da orelha em relação a seu conteúdo supostamente polêmico.
Acontece que se trata do famoso filme que mostra Jesus se casando com Maria Madalena. A questão fundamental é em que contexto isso se dá. Ora, meus conhecimentos acerca do cristianismo são parcos; quando cursei a disciplina “filosofia da religião” escolhi traçar uma comparação entre judaísmo e islamismo justamente com o intuito de, ao conhecer um pouco de ambas as religiões, tentar investigar até que ponto suas divergências justificariam seu conflito bélico e constatei que a questão é essencialmente política, pois no plano estritamente religioso elas têm muito mais em comum do que um leigo (como eu) poderia supor e fiz tal escolha também com o intuito de não estudar o cristianismo. Voltando a este último, o filme parece-me ser bem tradicional até chegar na “heresia” próxima do final. A exceção é uma cena em que Cristo está num leito ao lado de vários homens os quais, um a um possuem uma mulher. Após todos se saciarem, ele se aproxima da tal mulher (deitada numa cama/ esteira e despida) e esta, ao perceber de quem se tratava, se cobre com um pudor insuspeito caso se tratasse de qualquer outro homem. Mas este era Jesus e a mulher em questão era Madalena. Somos então informados de que eles se conhecem desde a infância e de que ela é apaixonada por ele que, por sua vez, parece correspondê-la, mas não da mesma forma (a mim, pareceu ser o sentimento dele mais o seguinte: não querer seguir os desígnios do “Senhor”, mas viver uma vida comum com mulher e filhos, sendo Madalena uma boa opção, mas não propriamente uma paixão – tal interpretação está aberta a controvérsias, claro).
No mais, o filme parece retratar a jornada de Cristo de forma bastante tradicional (aliás, o fato de ele fazer cruzes e de conhecer Judas antes dos demais apóstolos também me soou estranho, mas como passei longe da Bíblia até então não posso especular mais a fundo sobre a fidelidade do filme aos textos “Sagrados”). Insisto nesta questão da fidelidade por dois motivos: 1) o filme se inicia com a afirmação de que não se inspira nos Evangelhos; 2) tudo que vá contra os textos “Sagrados” é taxado de herético, infame e mentiroso pelos cristãos donos da verdade .
No decorrer do filme, lá estão as passagens mais célebres da vida de Jesus, conhecidas por todos que tenham o mínimo de cultura cristã, mesmo que não tenha sequer chegado perto da Bíblia; Cristo salvando Madalena do apedrejamento perguntando “quem nunca pecou” (o interessante aqui é que um ancião não intimidado com tal assertiva dizia não ter o que esconder, sendo necessário ao Messias mencionar alguns de seus podres – o fato de enganar seus empregados, bem como um romance indevido – de modo que o argumento me pareceu mais psicológico que moral – enquanto for possível negar meus pecados não hesitarei em apedrejar, mas não ouso faze-lo se muitos sabem de minhas faltas); o batismo de Jesus por João Batista; as meditações e a provação das tentações no deserto (merece destaque aqui a confiança adquirida por Cristo após tal provação, questão essa que mencionarei mais a frente); os milagres (fazer um cego voltar a enxergar, transformar água em vinho); a fúria contra os mercadores no templo; a última ceia; o beijo de Judas.
É interessante a caracterização inicial de um Cristo atormentado, cheio de dúvidas no qual o sentimento predominante é o medo. Ao começar a criar confiança de poder realmente efetivar os desígnios de Deus, faz ele um discurso que não repercute exatamente como o esperado; fala de amor, mas afirma que “os que riem hoje amanhã chorarão” e acaba involuntariamente incitando muitos à violência, ao que ele retruca, decepcionado “eu não disse morte, disse amor”. Após receber o machado de João Batista, Jesus fala em guerra (o que para mim parece mais algo metafórico, ainda que no templo ele efetivamente destrua barraca dos mercadores); no entanto, após o amor e o machado/ guerra, percebe ele que o caminho é o (auto) sacrifício. (As oscilações entre o Jesus medroso e angustiado do início, confiante e altivo pós encontro com João Batista, provações no deserto e “embate” com os mercadores e em desespero após a última ceia, implorando a Deus que haja outro jeito que não seja sua morte na cruz expressam a meu ver uma caracterização verossímil de um homem que enfrentou um grande fardo e realizou um grande feito). Ponto para Scorsese (e para Nikos Kazantzakis, autor do livro no qual o filme foi inspirado) que enfatizaram o lado humano de Cristo (sem negarem seu lado divino – o que pessoalmente considero um ponto negativo).
Um dos aspectos mais interessantes da obra é, sem dúvida, a caracterização de Judas; enviado para assassinar Cristo, resolve segui-lo. Quando este encontra outros apóstolos, Judas (Harvey Keitel, ótimo como sempre) queixa-se serem todos eles muito fracos. Só ele seria forte o suficiente. E essa força ser-lhe-ia cobrada de forma deveras exigente; Cristo não só sabia da “traição” de Judas, mas lhe pedira para perpetrá-la. Desse modo, penso eu, não se pode falar propriamente em traição. Na realidade, só Judas seria suficientemente forte para realizar tal ação, a ponto de Cristo dizer que sua tarefa era mais fácil que a de seu fiel apóstolo. No filme não vemos um Judas trair Jesus por dinheiro, mas – paradoxalmente! – por extrema fidelidade a seu mestre. Tal fato me soa de uma beleza trágica que permite uma analogia bastante significativa: se amo alguém, mas tenho motivos para pensar que tal pessoa será mais feliz com outrem, desistir de tal pessoa não é uma prova de não ama-la, mas, – paradoxalmente – uma prova suprema de amor (desde que tal renúncia tenha sido feita realmente em prol da felicidade do ser amado, e não em virtude de meu medo de ser feliz com a pessoa amada).
Cristo é posto na Cruz; chegamos aqui ao ponto culminante da obra? De forma alguma. Em pleno tormento do Messias, que se pergunta “pai, por que me abandonas-te?”, vemos se desenhar a heresia; diante dele surge uma garota de cabelos loiros que aparenta ter entre 9 e 12 anos, um verdadeiro anjo que veio salvar o salvador da humanidade (e a interpretação da garota é soberba). Deus pediu a Abraão que matasse seu filho, mas quando este provou que o faria, foi impedido. O mesmo se dava então com Jesus, que após tanto sofrer havia cumprido sua missão e não precisaria sacrificar a própria vida. Assim, Cristo escapa de seu destino trágico tao bem conhecido por todos nós ocidentais, sejamos nós cristãos, anticristãos ou qualquer um dos meio-termos existentes entre estes dois extremos. Em cena breve e discreta, vemos Jesus possuindo Madalena. Esta engravida dele, mas acaba falecendo. A “anja”, porém o persuade a arrumar outra esposa, afinal “todas são Madalena, só que com rostos diferentes”. Ele não só arruma esposa, como tem filhos. Encontra então Saul (Paulo) pregando em nome do cristianismo e contando como o Messias foi morto na cruz para nos salvar; Jesus o refuta, dizendo estar vivo e aquele lhe responde dizendo que dá às pessoas a verdade da qual elas precisam (ou seja, afirma explicitamente que não se preocupa em ser fiel aos fatos, mas em ser o mais persuasivo possível, o que provavelmente aconteceu realmente, visto que Cristo nada deixou escrito...).
Jesus envelhece, e próximo de sua morte recebe a visita dos apóstolos; todos lhe são condescendentes, menos Judas; este lhe revela que a “anja” é na verdade o demônio e que ele (Jesus) renunciou a Deus ao aceitar não morrer na cruz. Esta revelação é, de fato, deveras surpreendente. Temos um Jesus covarde, traidor. Nada mais herético, não? Mas ai temos a segunda virada de mesa do filme (e a grande questão a se discutir é até que ponto esta atenua ou mesmo anula a primeira): Jesus ancião (brilhantemente interpretado por Willem Dafoe – ele me parece melhor interpretando o Cristo ancião, apesar de se sair muito bem interpretando o Cristo jovem) cambaleia até o lugar onde fora fixada a cruz na qual ele fora pregado e pede perdão a Deus; vemos então ele novamente jovem, preso à cruz (o que indica que esta sua renúncia ao sacrifício não passou de um sonho). É indiscutível a grande engenhosidade destas duas viradas de mesa (não sei até que ponto isso é produto original do romance...).
Em suma, parece-me que a obra supostamente herética, no fundo constitui uma exaltação da figura de Cristo, essa não sendo ingênua e inverossímil como aquelas que o concebem como infalível (qual seria o mérito de suportar o sofrimento se o sofredor fosse imune a ele?). Não deixa, porém, de ser corajosa, ao apontar caminhos logo taxados de heréticos. Um belo filme, sem dúvida, e que nos faz pensar, e muito (se estivermos dispostos a isso).
Em tempo: não tenho nada contra a figura de Cristo (ainda que minha visão sobre ele seja mais a de um homem a frente do seu tempo – como foram outros antes e depois dele – do que a de um santo ou mais que isso) nem contra o cristianismo puro (se é que isso existiu!), mas contra o que chamo de cristianismo institucionalizado, ou seja, a religião transformada em instrumento de opressão e dominação, auto-intitulada portadora duma verdade inquestionável (acredito que isso começou com Paulo e a fundação da Igreja Católica, mas posso estar enganado; não estou enganado, entretanto, quanto a abundante bestialidade perpetrada em nome de Deus, sejam por cristãos de diferentes cisões, seja por adeptos de outras religiões). A isso, deixo expresso meu mais visceral repúdio.
Alberto Bezerra de Abreu 02/04/2010 (redigido ao som de Chopin e Villa-Lobos)
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