quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

PostHeaderIcon A MELANCOLIA de Lars Von Trier e do Cinema em Pernambuco.

 
 
 
 
 
 
 

Melancolia: 100% de ingressos vendidos na estreia, ultrapassando mais de 5.000 espectadores na 4ª semana de exibição.

Surrealismo niilista: a natureza rasgando o vestido moralístico.

Vênus de Lars Von Trier

John acompanhando o Melancholia à luz da Razão.




O tema deste texto é o filme Melancolia, porém não poderia deixar de abordar este filme sem problematizar, em breve linhas, o funcionamento do mercado cinematográfico. Por ano, cerca de dez mil filmes são feitos no mundo, contudo, apenas 2 a 3 % deste total são exibidos no Brasil. Esta problemática está diretamente ligada à política de distribuição de filmes do mercado cinematográfico.

Após um filme estar pronto, os produtores o exibem para diversas distribuidoras como Warner, Europa Filmes, Focus Filme, Columbia Pitures, Califórnia Filmes etc.; sendo aprovado por uma das distribuidoras, elas passam a negociar com os donos dos principais cinemas de vários países, os quais irão levar em consideração uma estatística especulativa de lucratividade da exibição do mesmo. Sendo positiva, o negócio é fechado – inicia-se a propaganda – e o lucro é dividido meio a meio entre a distribuidora e os exibidores. Em síntese, a arte cinematográfica desce ao restrito patamar dos lucros e estatísticas – perdendo seu valor espontâneo de agente questionador da sociedade a partir da subjetividade da lente do cineastra em seus temas mais diversos.

Restrito a tal política, não é à toa que filmes como o do renomado diretor dinamarquês Lars Von Trier se torne invisível para as diversas salas de cinema do Brasil, mesmo quando estrelados por atores hollywoodianos como Willem Dafoe (O Anticristo) e Nicole Kidman (Dogville). Desta vez, em Melancolia, entraram em cena Kirsten Dunst (famosa pelo filme Homem-Aranha), e Kiefer Sutherland (protagonista da série 24 Horas). Mas isto não foi o suficiente para os dois grandes cinemas de Pernambuco, o Box Cinema e o UCI Ribeiro, abraçarem a nova obra de Von Trier – na verdade seu nome os assustam, dado a complexidade questionadora e existencialista dos filmes deste diretor que, infelizmente, às vezes, afasta o grande público. Dogville estreou em 2003 no UCI Ribeiro e semanas depois da estreia sua bilheteria caiu bruscamente. A pessoa de Nicole Kidman, em um dos seus mais brilhantes trabalhos, não foi o suficiente para manter uma boa lucratividade – daí em diante, ao menos em Pernambuco, mais nunca o grande público ouviu falar de Lars Von Trier. Todavia, o cinema da Fundação Joaquim Nabuco, instituto histórico-cultural vinculado ao Ministério da Educação, vinha abraçando desde 1998 a obra do diretor e, por consequência, colocou em cartaz o seu mais novo trabalho, Melancolia. O qual, para surpresa de todos, segundo Kleber Mendonça, curador do cinema da Fundação, teve em sua estreia 100% dos ingressos vendidos e ultrapassou, na 4ª semana de exibição, mais de 5.000 espectadores.

Melancolia não é um daqueles filmes que faz do espectador um mero observador de um início, meio e fim. Von Trier transforma o espectador numa espécie de voyeur dos sentimentos da trama, ou seja, ao observarmos a película, passamos a interagir com os paradoxos existencialistas da trama, atribuindo-as a nós mesmos. E isto não só através dos diálogos, mas também, através da belíssima fotografia do filme que, em vários momentos, remete a uma plasticidade surrealista.

No início do filme somos massacrados com a imagem da Terra sendo destruída. Simultaneamente à catástrofe, presenciamos, em câmera lenta, pessoas agindo apenas pela espontaneidade de seus inconscientes. As sequências de cenas parecem incoerentes. E de fato são (!): uma linda noiva com o seu buque desliza por sobre as águas de um rio; uma mãe corre desesperada, sem rumo, abraçando fortemente seu filho. Mas como salva-lo se a catástrofe que esta por vir é eminente? Que Razão há em seu agir? E a mesma noiva que antes deslizava por sobre o rio, também aparece correndo em direção ao nada, porém, as raízes das árvores brotam bruscamente da terra, enroscando suas mãos e pernas, impedindo-a de correr, rasgando seu vestido. É a natureza proclamando o caos, rasgando simbolicamente os valores morais da sociedade, fazendo do ser Humano novamente natureza, ou seja, tornando-o parte insignificante dos acasos da imensidão do cosmo.

O filme é dividido em duas partes, a primeira dedica-se a Justine (Kirsten Dunst) que, diante de sua glamorosa festa de casamento, patrocinada pelo seu cunhado, John (Kiefer Sutherland), e organizada por sua irmã, Claire (Charlotte Gainsbourg), transmite ao espectador uma constante angustia que, para John, parece incompreensível, dado que ela está vivendo, naquele momento, todo o glamour que qualquer mulher desejaria para o seu casamento: com chegada em limusine, festa numa mansão, baile e ritos nobres de discursos à mesa. E visto estas circunstâncias John pergunta para Justine se ela está feliz, mas tendo implícito em sua pergunta que ela deve(!) ficar feliz. Ela responde que sim, mas na festa demostra estar sempre cansada e de lá foge constantemente. Sua irmã, aflita em entender a indisposição de Justine, pergunta o que lhe aflige, e ela responde que possui um “cordão cinza nos pés” – é a bola de ferro da moralidade, que a aprisiona e a atormenta. E o ato de ter olhado para o céu ao chegar à festa, deixava-lhe clarividente que nada somos diante do Universo e que os valores morais são meras formalidades construídas pelo homem e transformadas, por ele mesmo, em arquétipos imanentes a se mesmo.

O niilismo de Justine leva-a ao total fracasso de sua festa. Ela é pressionada por sua irmã a renegar sua angustia; é pressionada pelo seu chefe de trabalho, também convidado da festa, lutando para não perder sua melhor funcionária; e por seu cunhado, impondo uma felicidade arquetípica. Justine é um ser dionisíaco aprisionada em muralhas apolínias. Atormentada, renega seu emprego; ignora o lamento de sua irmã e rasga o vestido da moral ao trair seu noivo durante a festa, simplesmente pelo ato de trair e não de obter prazer, destronando a felicidade arquetípica do matrimônio. E mesmo sem ter conhecimento do ocorrido, seu noivo a abandona, pois não entende a apatia dela para com ele e para com todos os elementos de uma noite construída para ser estritamente bela – tão bela quanto a estética de Apolo.

A segunda parte dedica-se a Claire que, muito antes do casamento de sua irmã, já vinha atormentada com a possibilidade do astro Melancholia se chocar com a terra, informação a qual vinha circulando em sites sensacionalistas. John, porém, é um astrônomo e afirma que o astro não se chocará com a Terra, pois os cálculos sistemáticos realizados pela comunidade científica chegaram a esta conclusão. Justine, por sua vez, está psicologicamente abalada, mas isto em nada tem a ver com o Melancholia, pelo contrário. Em uma das mais belas cenas do filme, vemos Justine à beira de um rio, com o seu corpo completamente nu, sendo iluminada pelo astro. Ela sente que o por vir é eminente e se delicia com a luz prateada do astro que faz de seu corpo nu uma Vênus entregando sua volúpia a Dionísio, assim como na mitologia grega. O Melancholia é um astro dionisíaco que está além das especulações matemáticas do homem, para compreendê-lo é necessário deixar-se embriagar por ele.

John representa o discurso cartesiano e cientificista da trama, de tal forma que, ao perceber que os cálculos estavam “errados”, ele suicida-se, e Claire perde seu único sustentáculo de certeza de uma não colisão do astro com a Terra. Seu tormento inverte os papéis na trama. Justine, aparentemente louca, passa a ser a personagem mais consciente de toda a trama, dando apoio a Claire e seu sobrinho, Leo. Com ela, a razão e a ciência cede lugar à tragédia. Para ela, se o fenômeno é inevitável, façamos dele êxtase, pois se o homem é parte da natureza, por mais que ele a decodifique à luz da Razão, ele sempre estará sujeito a ela e aos seus acasos.

Assim, Von Trier nos faz refletir, nesta trágica parábola, o quão insignificantes podem ser os valores morais, tanto sociais quanto cientificistas, se nos compararmos à imensidão do cosmo. O físico e astrônomo Marcelo Gleiser, em seu livro Criação Imperfeita, diferentemente do personagem John, nos mostra o quanto já foi descoberto sobre o universo e as possibilidades do que está para se descobrir, porém, afirma que nunca encontraremos uma lei que englobe todas as possibilidades, ou seja, uma lei universal. Se um renomado astrônomo faz tal afirmação, porque nós, agentes sociais, não podemos nos propor à quebra de arquétipos morais de acordo com as necessidades das circunstâncias? Ou seja, porque não aceitar a relatividade de padrões de valores, crenças e comportamentos? Isto é algo difícil para o ato de ser Humano, pois negar o a priori moral significa negar a imanência da ótica de mundo que até então lhe era vigente. E negando, abrimos um vazio que nos angustia dado as possibilidades de múltiplas óticas – e nem todos sabem lhe dar com o vazio de ser um grão de areia dentro desta multiplicidade, tanto na Terra quanto no Universo.



Daniel Gomes*


*Postado originalmente em 28 de agosto de 2011 no seguinte endereço:


http://niilismodeverao.blogspot.com/2011/08/tema-deste-texto-e-o-filme-melancolia.html


8 comentários:

ISABELE disse...

Já havia lido esse texto, você o enviou para mim por e-mail, esqueci de comentar contigo. Daniel escreve deveras bem, a análise das personagens é impressionante, no mais ficou muito bom.

Daniel Gomes disse...

Muito obrigado Isabele pelos elogios.
E valeu Alberto por postar meu texto :)

Miradouro Cinematográfico disse...

Isabele:

concordo com sua avaliação do texto de Daniel e no comentário que fiz no blog dele, frisei o fato dele ter tomado um direcionamento diferente do que eu havia pensado (sendo o enfoque dele não apenas diferente, mas tbm interessante), embora eu tenha minhas ressalvas intepretativas (não estilisticas).

Quanto a vc, quando irás escrever um comentário sobre este filme p/ este blog? Vc me fez uma pergunta acerca daquele que, se bem entendi, demonstra uma concepção reducionista sua, ao menos em relação ao trabalho da Kirsten Dunst; exponha-o, para que possamos trocar farpas em público =D

Miradouro Cinematográfico disse...

Daniel:

Se alguem tem de agradecer aqui sou eu e refiro-me menos à qualidade do seu textos (atestada não só por mim) do que a possibilidade de efetivar meu intento de tornar as postagens deste blog coletivas (até então só uma pessoa além de mim havia publicado textos aqui).

Por outro lado, se achas que deves me agradecer, peço que o faças não com palavras, mas com um ato (o qual, entretanto, consistirá justamente em utilizar palavras ¬¬): responda aqui a primeira pergunta que lhe fiz em meu segundo comentário à sua postagem sobre "Melancolia" em seu blog; reproduzo-o aqui:

"1)tal interpretação nitezschhiano-dionísiaca do filme é perspectiva exclusivamente sua ou achas que Tries bebeu conscientemente em Nietzsche?"

Ps. para quem tiver interesse na minha perspectiva acerca do texto de Daniel, vide os comentários da postagem deste mesmo texto no blog dele no link abaixo:

http://niilismodeverao.blogspot.com/2011/08/tema-deste-texto-e-o-filme-melancolia.html#comment-form

ISABELE disse...

Nunca Seu Alberto, tu achas que diante de tantos textos excelentes, tanto os seus como os de outrem, eu ousarei escrever alguma das minhas besteiras aqui, nunquinha em Cristo. É uma oferta tentadora trocar farpas com vossa pessoa em público, mas não arrisco, pelo menos não nesses termos.

Daniel Gomes disse...

Muito bem vamos lá =):

1)Tal interpretação nietzschiano-dionísiaca do filme é perspectiva exclusivamente sua ou achas que Trier bebeu conscientemente em Nietzsche?

Quando assisti ao filme, desde o seu início, para mim, foi inevitável fazer o paralelo; de tal forma, que em todo o decorrer tentei procurar em seus pormenores todos os elementos possíveis para a empreitada de minha interpretação. Consegui ver vários elementos que, SIM, de fato sai da sala do cinema convencido de que Von Trier fez um filme intencionalmente nietzschiano-dionísiaco - e mais (!): sai da sala com plena certeza de que o seu foco foi o livro "O Nascimento da Tragédia", dado que o principal elemento que percebi (ou fui seduzido) foi a dialética entre o Apolíneo e o Dionisíaco (ou melhor, entre Justine e Claire), deixando escapar importantes aspectos, como o "decadent" e o "amor fati" (algo que chegamos, inclusive, a comentar no meu blog).

Porém, Von Trier afirmou em uma entrevista de imprensa sobre o filme "Melancolia" que "quando escrevo, só consigo escrever sobre mim mesmo. E quando ela [Justine] entra em depressão é um retrato de minha depressão". Daí, passei a encarar a obra de Von Trier mais como uma decodificação de um estado de espírito, que perpassa a ele e ao cotidiano de todos nós, ou seja, o espírito trágico - no pleno sentido nietzschiano. Assim sendo, não é à toa que durante a entrevista, quando Von Trier é questionado qual era o seu estado de espírito enquanto escrevia e dirigia o filme, ele responde que "de certa forma é revigorante fazer um filme sobre algo ruim. Não é que você se sinta mal todo o processo. É uma recompensa de algo ruim que viveu. [...] Só porque é uma tragédia não quer dizer que chore o tempo todo."

De posse destas palavras é possível percebi que Von Trier, no processo artístico (ou dionisíaco) fez de sua depressão (ou espírito "decadent"), uma recompensa, um despertar para o mais-viver (ou seja, o "amor fati"). Portanto, é possível sim que Von Trier seja um assíduo leitor de Nietzsche, mas pelo visto, ao menos segundo ele próprio, o filme parece ter sido bastante particular, levando-o à questionamentos existencialistas que o aproximou do universo nietzschiano, pois, como disse anteriormente, o espírito trágico perpassa o cotidiano de todos nós.

Segue a baixo o link da Entrevista com Von Trier:

http://www.youtube.com/watch?v=05dLYLC91Y0

2)vc se identifica com Justine?

Esta serei breve: SIM. Mas como estou em uma Law House e o tempo tá acabando depois agente conversa sobre isto :).


Abração!!!

Miradouro Cinematográfico disse...

Dona Isabele, sendo tu uma pessoa DESPUDORADA, não vejo motivos para constrangimento em postar um texto "marromenos"; em todo caso, podes postar com pseudonimo; só não permite textos anônimos.

Miradouro Cinematográfico disse...

Não sei. O que tentei argumentar no meu comentário em seu blog é que, embora seu texto esteja muito bem desenvolvido, não concordo com a perspectiva dele. E relendo minha segunda pergunta, achei-a demasiado pessoa, quiçá invansiva, mas como o Sr. se propôs a responder... O problema aqui é que o Sr., ao identificar-se com Justine a romantiza e não acredito que von Trier seja Justine apenas, mas tbm Claire. Não se engane com o cineasta, pois ele é deveras cínico. Se há influência de Nietzsche em "Melancolia", penso que seja ela mais enquanto catarse (faço o filme e exorcizo meus demônios, algo bem "bergmanianao") que num sentido trágico romântico. Talvez eu tenha me precipitado, pecando pelo extremo oposto seu: embora não chegue a preferir Claire à Justine, tbm não me identifico com esta e penso que, no final das contas, a oposição entre as irmãs finda com uma aproximação de personalidade entre elas; ambas são decadents, cada uma a sua maneira, mas no climax da obra (um paradoxal final feliz dentro duma hecatombe, na minha interpretação), ambas abrançam corajosamente o amor fati (amor ao destino p/ os não iniciados).

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Alguém que escreve para viver, mas não vive para escrever; apaixonado pelas artes; misantropo humanista; intenso, efêmero e inconstante; sou aquele que pensa e que sente, que questiona e duvida, que escapa a si mesmo e aos outros. Sou o devir =)
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